Uribe tentou convencer a opinião pública que Chávez e Correa têm ligações com as Farc baseando-se em dados apreendidos na operação de 1º de março. Porém, as incongruências são inegáveis. Se Raul Reyes e a vegetação local não sobreviveram aos bombardeios, como os computadores saíram ilesos?
por Maurice Lemoine
1º de março de 2008, 00h25. Com uma exatidão implacável, a primeira das dez bombas “inteligentes” guiadas por GPS atinge seu alvo. Não estamos no Oriente Médio. A cena se passa no Equador, a dois quilômetros da fronteira com a Colômbia, onde o rio Putumayo separa os dois países. Quatro helicópteros Blackhawk OH-60 surgem no meio da noite. A bordo, escolhidos a dedo, 44 soldados da Força de Deslocamento Rápido da Colômbia (Fudra). Eles não terão de combater. No acampamento das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) devastado pelas explosões, 23 corpos inertes1. Foram mortos enquanto dormiam. Entre eles, Raúl Reyes, número dois e “ministro do exterior” da guerrilha. Seu corpo é levado como troféu.
De manhã bem cedo, o presidente colombiano Álvaro Uribe contata o equatoriano Rafael Correa. Explica-lhe a situação: unidades militares colombianas foram atacadas por disparos vindos do Equador. Em legítima defesa, responderam e perseguiram os rebeldes. No entanto, assegura que não houve “violação do espaço aéreo equatoriano”. Correa acredita na palavra do presidente colombiano. Falam-se todos os dias ao telefone e têm um relacionamento amigável. Duas semanas antes, diante de uma xícara de café, Correa teria confiado a um conselheiro próximo do chefe de Estado venezuelano: “Diga a Chávez que eu me entendo muito bem com Uribe e que, se quiser, posso ajudar a aparar as arestas entre eles”.
Porém, quando os militares equatorianos inspecionaram o local, a verdade apareceu: não somente os colombianos violaram o território do país vizinho como perpetraram um “massacre”, afirmou Correa durante sua coletiva de imprensa no dia 2 de março. O presidente equatoriano se sentiu traído. Duplamente traído. Quito rompeu então as relações diplomáticas com Bogotá e enviou onze mil homens para a fronteira. Caracas mandou dez batalhões para seus limites territoriais a oeste. Era uma decisão amadurecida, não uma reação irracional.
“Não queremos guerra”, avisou Chávez, “mas não permitiremos que o império, nem seu cachorrinho, venham nos enfraquecer”. Nenhum governo sul-americanos aprovou a investida. Em nome da “luta contra o terrorismo”, os Estados Unidos apoiaram Bogotá. Craig Kelly, representante do governo norte-americano, reafirmou tal posição em entrevista coletiva: “O que dissemos é que, em primeiro lugar, um Estado deve se defender contra a ameaça do terrorismo e que, quando se fala de fronteira, deve-se falar do contexto geral, ou seja, de uma violação contínua das fronteiras por parte das Farc”. “Isso significa, por exemplo, que se o México perseguisse narcotraficantes no território americano, os Estados Unidos não fariam nenhuma objeção à entrada de tropas do país vizinho no seu território?” perguntou um jornalista. “Não vou entrar numa discussão teórica” respondeu Kelly2.
A sombra de Washington pairou novamente quando Correa descobriu que seu Estado-maior havia mentido. A tensão atingiu seu auge quando o general Jorge Gabela, comandante da força aérea, explica que o radar mais próximo de Santa Rosa (zona em que se encontrava o acampamento das Farc) não funcionava havia vários dias porque estava em manutenção. Ao destituir o chefe dos serviços de informações, o coronel Mário Pazmiño, Correa destilou: “Basta de serviços de informações que são financiados pela embaixada dos Estados Unidos. Há oficiais aqui que trabalham para a CIA antes de trabalhar para o governo!”. Em seguida, o presidente substituiu o ministro da Defesa Wellington Sandoval por uma pessoa de sua confiança, Javier Ponce. A situação provocou a demissão de diversos chefes das forças armadas, como da Infantaria, Marinha e Aviação.
Porém uma importante base americana ainda opera no Equador. A concessão do Posto de Operações Avançado (Foreign Operating Location), alugado pelos Estados Unidos em 1999, vence em 2009, e durante sua campanha eleitoral, Correa prometeu que fecharia esta instalação, fixada em Manta. Assim, em 28 de fevereiro, a Assembléia Constituinte, reunida com o propósito de “refundar o país”, aprovou um artigo estabelecendo que “o Equador é um território de paz que não permite o estabelecimento de bases militares estrangeiras”. Mas, até que isso entre em prática, Manta continua uma das peças-chave de Washington no que se refere à sua ajuda militar à Colômbia e dispõe de tecnologia de ponta. No dia do ataque, a base auxiliou no controle do espaço aéreo.
Ao saber disso, Correa se enfureceu novamente. Bogotá rebateu as críticas anunciando que, durante sua incursão, o exército colombiano havia apreendido um computador portátil que pertencia a Reyes. E que esse material trazia segredos terríveis: os presidentes Chávez e Correa manteriam relação com as Farc. Na ausência de certezas, surgiram as primeiras indagações. O acampamento principal de Reyes ficava na Colômbia, próximo à fronteira3. Nessa região, as Farc dispunham de inúmeros esconderijos, refúgios e abrigos. Por que, então, o comandante guerrilheiro passou para o país vizinho com três computadores, dois discos rígidos e três chaves USB? O bombardeio fez 23 vítimas; os dez projéteis, segundo o exército equatoriano, abriram crateras de 2,40m de diâmetro por 1,80m de profundidade; a vegetação das redondezas foi devastada. Como os computadores escaparam ilesos?
Ainda assim, essas máquinas falaram. Ponta de lança de uma campanha permanente contra os governos progressistas da América Latina, o jornal espanhol El País , na edição de 12 de março, “informava” seus leitores: “As Farc encontram refúgio no Equador”. O artigo contava que “os guerrilheiros se deslocavam em caminhonetes pelo norte do Equador, como constatou um funcionário da OEA (Organização dos Estados Americanos), que expressa seu espanto de cruzar com guerrilheiros perfeitamente equipados em restaurantes da zona fronteiriça”. O que os mesmos leitores não ficam sabendo é que, no dia 15 de março, em uma carta endereçada ao diretor da publicação, o secretário geral da OEA, José Miguel Insulza, relata “sua surpresa e sua indignação” com a reportagem: “Posso assegurá-lo de que essa afirmação é absolutamente falsa. A OEA não tem missões especiais, nem funcionários de qualquer nível alocados na fronteira norte do Equador. É impossível que algum funcionário desta organização possa ter feito tal declaração”4.
A verdade é que Reyes e seu grupo de combatentes estavam no Equador por um motivo. Há longos meses, o comandante guerrilheiro era o principal contato de todos os emissários – franceses, suíços, espanhóis, venezuelanos, equatorianos – que negociavam com as Farc a libertação de seus prisioneiros e reféns, entre os quais a franco-colombiana Ingrid Betancourt. Uma semana antes da operação de 1º de março, emissários franceses encontraram no Panamá Luis Carlos Restrepo, Alto Comissário para Paz Colombiana, que recomendou: “Mantenham contato com Reyes. É ele quem vai ajudá-los na libertação de Ingrid Betancourt”. É mais uma explicação para a fúria de Correa: “Olhem a baixeza de Álvaro Uribe! Ele sabia que em março seriam libertados doze reféns, entre eles Ingrid Betancourt. Ele sabia disso e usou seus contatos para montar esta cilada”.
Troca humanitária
A guerrilha exigiu, por muito tempo, uma comunicação direta com o governo colombiano. Solicitavam uma “troca humanitária” – reféns por guerrilheiros – ou nada feito. A mediação veio apenas com Chávez. No dia 31 de agosto de 2007, a guerrilha libertou sete prisioneiros sem impor condições, o que causou reviravolta em uma situação paralisada há cinco anos. “As Farc entram numa lógica mais ‘política’, é um bom sinal para o futuro”, declarou Chávez. Desde 2002, haviam sido colocadas na lista de organizações terroristas, o que repudiam com veemência.
Mas a ajuda de Chávez não passaria incólume pela imprensa após a investida colombiana que matou Reyes. Já no dia 4 de março, o El País
Porém, como duvidar da veracidade de documentos cuja autenticidade foi confirmada pela International Criminal Police Organization, mais conhecida como Interpol? É um argumento incontornável sobre o qual se apóiam tanto Bogotá quanto o conjunto do grande circo midiático. Mas o exame cuidadoso dos fatos revela incongruências: no dia 4 de março, o general Naranjo – ex-chefe da polícia antidrogas da Colômbia, destituído do cargo quando seu irmão, Juan David, foi preso sob a acusação de narcotráfico – procurou a Interpol para que ela fizesse uma perícia independente das “oito provas digitais”. Tendo a organização consentido com o pedido, seu secretário geral, o americano Ronald K. Noble, apresentou o relatório para Bogotá em 15 de maio6.
De acordo com as análises feitas e as declarações de Noble, o campo de intervenção da Interpol limitou-se a “estabelecer os dados contidos nas oito provas; verificar se os arquivos de usuários7 haviam sido modificados de qualquer maneira no 1° de março de 2008 ou após essa data; e determinar se as autoridades colombianas haviam processado e examinado as oito provas, conforme os princípios reconhecidos em nível internacional”. Mas “a verificação não implicava a validação da exatidão dos arquivos de usuários [os documentos]”.
Em outras palavras, os peritos da Interpol (originários de Cingapura e da Austrália, que não falam espanhol) não examinaram qualquer conteúdo. Nos 609,6 gigabytes das oito “provas”, havia 37.873 documentos escritos, 452 planilhas de cálculo, 210.888 imagens, 22.481 páginas web, 7989 endereços de e-mail, 10.537 arquivos multimídia (som e vídeo), e 983 arquivos codificados. “Em termos não técnicos, tal volume de dados corresponderia a 39,5 milhões de páginas cheias no formato Word da Microsoft e, se a totalidade dos dados estivesse em formato Word. Seriam necessários mais de mil anos para analisá-los todos, à razão de cem páginas por dia”, avaliou a Interpol.
Muita coisa para um homem só. Reyes tinha 60 anos, deslocava-se sem parar na selva e vivia em condições precárias quando foi morto. Contudo, o governo colombiano, após poucas horas do término da operação, divulgou as tais revelações encontradas nos computadores. Era o suficiente para que muitos jornalistas orquestrassem os “documentos” – autenticados pela Interpol – numa trama suficientemente plausível.
Operação psicológica
Além disso, a organização policial contentou-se em retomar a versão de Bogotá, uma vez que nenhuma testemunha assistiu à suposta recuperação do material perto do corpo dos guerrilheiros. “Quem vai provar que os computadores foram de fato encontrados com as Farc?”, questionou o presidente Correa em 13 de maio.
Em uma primeira correspondência enviada à Interpol no dia 4 de março para solicitar ajuda, o general Naranjo menciona “três computadores e três dispositivos de armazenamento USB”. Em sua resposta datada de 5 de março, Noble aceita, em nome da organização, examinar “três computadores e três chaves USB”. Porém, no dia 6 de março, em uma carta de Maria del Pilar Hurtado, diretora do Departamento Administrativo de Segurança da Colômbia, à Interpol, o material em questão torna-se “três computadores portáteis, três chaves USB e dois discos rígidos”. De onde saíram esses discos rígidos? Passaram desapercebidos?
Resumindo, o relatório conclui que “nenhum dado foi criado, acrescentado, modificado ou excluído em nenhuma dessas provas entre 3 de março de 2008 às 11h 45 [dia e hora de seu recebimento pelo Grupo de Investigação das Infrações Informáticas da Polícia Judiciária Colombiana] e 10 de março de 2008, quando elas foram entregues aos peritos da Interpol a fim de gerar imagens-discos”. Também afirma que “o acesso aos dados, durante o mesmo período, foi efetuado conforme os princípios reconhecidos internacionalmente para o processamento de provas eletrônicas”.
Mas, e entre os dias 1º de março e 3 de março? Um agente da unidade antiterrorista colombiana “teve acesso direto ao conteúdo das oito provas em condições de extrema urgência” e todas elas foram conectadas a um computador “sem geração prévia de uma imagem de seu conteúdo e sem utilização de material de bloqueio”. De maneira que, durante esses três dias, “o acesso aos dados não foi efetuado conforme os princípios reconhecidos em nível internacional”. Lamentável quando se descobre que 48055 arquivos foram criados, abertos, modificados ou excluídos, conforme consta no relatório.
Nenhum tribunal poderia se basear nesses dados para julgar qualquer pessoa ou país. Mas os rumores correram e deram origem a grandes manchetes. Fatos duvidosos são passados como verdades e atingiram o Equador e, principalmente, a Venezuela. Se ainda não foram reunidas as condições para que este país entre na categoria de “Estado terrorista” ou de “Estado bandido”, essa campanha pretende consolidar isso na opinião pública. Na realidade, analisa Maximilien Arvelaiz, conselheiro próximo ao presidente Chávez, “George W. Bush quer deixar bombas-relógio a qualquer custo para que, independentemente do desfecho da eleição americana em novembro, seja muito difícil modificar a política dos Estados Unidos em relação à Venezuela”.
Vista de outro ângulo, esta psy-op(operação psicológica, no jargão da espionagem) torna muito difícil a retomada das negociações para a libertação dos reféns, afastando cada vez mais Equador e Venezuela da Colômbia. divulgou uma matéria com o título: “Bogotá revela os apoios das Farc”. Em outro artigo, “Os papéis das FARC acusam Chávez”, de 10 de maio – o primeiro de uma série de Maite Rico5 –, descobre-se que “Chávez aprovou sem pestanejar um pedido de US$ 300 milhões” da guerrilha. Desnecessário dizer que na Venezuela, os jornais El nacional e El Universal, assim como os canais privados Radio Caracas Televisión (RCTV) e Globovisión, se aproveitaram do banquete. Com entusiasmo, publicaram matérias com o governador do estado de Zulia e com o ex-candidato presidencial Manuel Rosales para acusar Chávez de “traição da pátria”. Um dos vários editoriais do Washington Post dedicados à Venezuela poderia, por si só, resumir a natureza dessa extraordinária campanha midiática: “Se o escândalo dos computadores for usado adequadamente, ele aprofundará o buraco no qual essa suposta ‘revolução bolivariana’ está se afundando”.
Maurice Lemoine é jornalista e redator-chefe do Le Monde Diplomatique.
1 Entre os mortos estavam um cidadão equatoriano e quatro jovens estudantes mexicanos. A 24ª vítima foi um soldado colombiano morto não “no fogo da batalha”, como o alegou Bogotá, mas por uma árvore que caiu sobre ele. Uma quinta mexicana, ferida, foi encontrada pelas autoridades equatorianas.
2 BBC Mundo, Londres, 7 de março de 2008.
3 Trata-se aqui de um fato comprovado, tendo-o encontrado ali o autor deste artigo. Ler “A Colômbia de Ingrid Betancourt”, Le Monde Diplomatique, abril de 2006.
4 Ver em www.vtv.gob.ve/detalle.php?s=2&id=4546.
5 Correspondente de El País no México nos anos 1990, Maite Rico distinguiu-se por sua hostilidade em relação ao Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN). Publicou, com Bertrand de la Grange, à época, correspondente do Le Monde no país, Subcomandante Marcos. A impostura genial (Paris, Plon/Ifrane, 1998)
6 Para ler a transcrição da conferência de imprensa e o resumo do Relatório de perícia da Interpol nos computadores e no material informático das Farc apreendidos pela Colômbia, acesse o site da Interpol: www.interpol.int/Public/ICPO/speeches/2008/SGbogota20080516FR.asp
7 Os arquivos de “usuários” são diretamente gerados pelo usuário que é responsável por seus conteúdos.
Palavras chave: Colômbia, Venezuela, Ámercia Latina, Uribe, política américa latina
Nenhum comentário:
Postar um comentário