´´Observe as tendências mas não Siga a maioria`` Thiago Prado


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quarta-feira, 27 de outubro de 2010

RÚSSIA, PARCEIRO INDISPENSÁVEL?

Há visões muito diferentes, no seio da OTAN, sobre a necessidade e forma de fazer progredir o relacionamento com a Rússia. Como conciliar essas visões, sob a forma de uma política coerente, é um dos mais importantes desafios a que o novo conceito estratégico da Aliança deve responder.

A Europa divide-se entre duas posições extremas. Por um lado, os que continuam a olhar a Rússia como uma ameaça à sua segurança e vêm na OTAN a garantia da sua defesa. Por outro lado, os que procuram ativamente um entendimento com Moscou, sob a ideia de que não pode haver, verdadeiramente, uma segurança européia global sem a participação da Rússia; inclui-se nos argumentos deste grupo o papel que a Rússia pode ter na solução dos problemas energéticos da Europa, no médio prazo, pelo menos.
Mas não é apenas por estas diferentes visões no campo europeu que a questão do estabelecimento de uma parceria com a Rússia se tornou muito complexa. É também, em grande parte, pela posição da própria Rússia e dos EUA. Washington precisa, no seu próprio interesse, de melhorar o relacionamento com a Rússia, mas não se mostra disposto a alterar a essência da política de contenção da Rússia – evitar o regresso ao anterior estatuto de potência imperial. No entanto, também não subscreve os receios dos que avaliam a situação a Leste como prioritária para OTAN (são principalmente os três países do Báltico). Os EUA consideram importante a segurança a Leste, mas obviamente não vêem na Rússia uma ameaça à Europa. Pelo que se disse anteriormente, esta posição acaba por em nada ajudar a resolver a divisão entre os europeus.

A postura russa é a principal dificuldade. Logo, em primeira instância, porque nada tem feito - bem ao contrário - para ajudar a enterrar o passado do domínio soviético, para fazer esquecer as razões de queixa que as antigas Repúblicas da União e países satélites conservam desses tempos e impedir que essas lembranças continuem a interferir no futuro. Depois, porque a utilização que Moscou faz dos seus recursos energéticos tem frequentemente contornos de coação, em especial, na vizinhança próxima, aproveitando a dependência em alguns casos quase total que se verifica nesses países (100% em relação ao gás, no caso da Lituânia, Letônia e Finlândia, por exemplo).

Moscou quer uma nova arquitetura de segurança para a Europa. Alega o Presidente Medvedev, que a atual não permite resolver os conflitos com eficácia por excesso de fragmentação na forma como os europeus se relacionam internacionalmente, em matéria de segurança e defesa (OTAN, UE, OSCE, etc.). No entanto, as razões de fundo da sua proposta decorrem de não ter qualquer voz ativa nas duas primeiras instituições, as que, de fato, cuidam da segurança e defesa na Europa.

Moscou já concluiu que os instrumentos de participação que a OTAN lhe tem oferecido não lhe dão qualquer capacidade de participação efetiva, de ser ouvido, de ter influência no respectivo processo de decisão. Aceitou o que lhe foi proposto porque, estando impotente para parar o alargamento da OTAN, viu nos mecanismos que então a Aliança criou - primeiro o “Political Joint Committee” e depois o OTAN/Russia Council - alguma possibilidade de participação útil. Esta esperança levou um primeiro golpe com a crise do Kosovo e depois desapareceu com os alargamentos por que a OTAN passou, em particular, o de 2004 em que nove dos 12 membros admitidos vinham precisamente da área de influência soviética, nomeadamente, os três países do Báltico que constituíam o caso mais sensível para Moscou.

O que o Presidente Medvedev pretende precisamente ainda não se tornou claro, entretanto em avançado com uma proposta de Tratado. Presume-se, que agora, de forma mais realista do que no início deste processo, já não pretende substituir o que existe, nem tentar dissociar a participação dos EUA da defesa da Europa. Em alternativa, defende uma arquitetura que englobe as organizações existentes num novo quadro de compromissos, assente no princípio de que as medidas a implementar têm que ter em atenção os interesses de todas as partes. Refiro-me ao nº1 do artigo 2º da proposta apresentada, regra que, na prática e se aceita, introduziria o direito de veto a, por exemplo, um novo alargamento da OTAN, se a Rússia alegasse que afetaria os seus interesses.

Têm sido dado alguns passos para tentar demonstrar que a organização de segurança existente, incluindo as mudanças recentemente feitas, não está feita contra a Rússia; inclui-se aqui, por exemplo, a mudança de percurso decidida pelo Presidente Obama na área da defesa anti-míssil. Mas a verdade é que também não está a sendo feita com Moscou, pelo menos na óptica do Kremlin, como acima explicado. Aliás, a possibilidade, que continua em aberto, do alargamento da OTAN continuar e, eventualmente, incluir a Ucrânia deixa escassas as perspectivas de melhoria do relacionamento, e menos ainda o estabelecimento de uma parceria com finalidade prática, isto é, que permita aos europeus conseguir o que necessitam em troca do que possam ceder.

Não é este, no entanto, o problema central. A principio, uma parceria com a Rússia na área da segurança européia estará sempre limitada pelo fato desse setor estar centralizado em duas instituições (OTAN e UE) de que a Rússia não faz parte, e com as quais mantém apenas ligações muito tênues. Não se imagina que esta situação possa se alterar proximamente; há explicações dos dois lados que não permitem prever outro desfecho. Da parte da Rússia, porque não é essa a prioridade; como se viu acima, o objetivo de Moscou é a construção de uma nova arquitetura de defesa e não a sua integração na existente. Da parte dos aliados, porque a “desejabilidade” de participação da Rússia na segurança européia, embora consensual para vários países europeus, não tem força suficiente para levar o coletivo a alterar a política de “incorporação”, que tem sido seguida desde o fim da Guerra Fria, por uma estratégia de “integração” implicando a aceitação da inclusão da Rússia nos processos de decisão dessas duas instituições.

Não quer isto dizer que não existe margem de manobra para tentar mudar, de algum modo, esta realidade; existe alguma possibilidade no funcionamento do OTAN-Russia Council (ORC), mas sob condições. O Relatório do Grupo de Peritos refere a principal quando recomenda que a agenda da ORC passe a responder às preocupações de segurança de ambas as partes («Allies should work with Russia to ensure an agenda for the NRC that responds in a frank and forward looking way to the security concerns of both sides ...»). O NRC é o único mecanismo disponível para desenvolver formas de cooperação susceptíveis de se traduzirem por uma maior inclusão da Rússia e induzirem uma maior transparência no relacionamento, isto é, darem uma maior e mais eficaz dimensão ao esforço de “incorporação”. Há, portanto, que tentar dar continuidade a exploração de sua potencialidade, mudando o respectivo estatuto onde necessário.

Parece-me ser também sob uma perspectiva idêntica que a UE tem agora apreciado uma iniciativa da Chanceler Merkel e do presidente Medvedev para a criação do Euro-Russia Political and Security Committee (a qual a França e Polônia já aderiram). Vamos ter oportunidade em curto prazo de verificar até que ponto esta iniciativa européia poderá inspirar a OTAN para seguir um caminho semelhante.

Fonte: Jornal Defesa e Relações Internacionais

Adaptação: Angelo D. Nicolaci

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Indústria de Defesa: Uma Proposta Para Reflexão

1. INTRODUÇÃO
Uma abordagem abrangente da indústria de defesa nacional deveria contemplar o envolvimento científico e tecnológico multidisciplinar e inovador com reflexos na economia, bem como ressaltar os efeitos duais no progresso industrial. Inúmeros exemplos podem ser apontados de indústrias de armamento e de países que, não raro, têm sua retórica apartada da “praticis”.

Contudo, o que é mais vital, essencial, é o fato histórico de que não se conhece nenhuma potência – mesmo potências médias – ao longo dos tempos, que não tenha tido um alto nível de desenvolvimento de ciência e tecnologia. Esse fenômeno ocorre porque o salto em ciência e tecnologia, ao contrário da percepção comum, arrasta a educação, o conhecimento, a cultura, a produção industrial, a demanda e a qualificação de empregos; enfim, força a nação a um patamar superior de nível de vida.

Do ponto de vista macroeconômico, o paradoxo do desenvolvimento bélico é que as guerras, ou mesmo as ameaças de conflitos, impulsionam um incrível progresso em ciência, tecnologia e inovação e, por via de consequência, abarcam desde os avanços aeroespaciais e da medicina, perpassando inúmeros campos do conhecimento, até o mais antigo deles, a agricultura. Com ênfase no estabelecimento de uma indústria de defesa que respeite os princípios e fundamentos da Constituição Federal, os compromissos internacionais brasileiros, e busque ampliar o poder nacional de forma adequada à projeção e à defesa dos interesses brasileiros, procura-se, neste texto, de acordo com a proposta de discussão:
• contribuir para promover a atualização do pensamento brasileiro em matéria de defesa e segurança;
• repensar, livremente, as transformações do País e do mundo dentro de 20 anos;
• discutir o que deve ser feito e o que deve ser evitado;
• discutir a questão da tecnologia dual, a projeção de poder e outros conceitos plenos de significados e implicações;
• considerar, no horizonte analisado, que nossos vizinhos são nossos amigos e que não se necessita de qualquer arma de destruição em massa;
• considerar que o mundo e o Brasil mudaram e continuarão em mudanças.

Dessa forma, estruturou-se a apresentação introduzindo, inicialmente, alguns conceitos sobre a medida do poder nacional; as implicações duais da ciência na guerra e na indústria de defesa; e análises sucintas de cenários internacional e nacional, com hipóteses de emprego e algumas restrições. Em seguida, é colocada, de forma provocativa, uma visão de política e de estratégia e, por fim, uma breve conclusão.

2. CONCEITOS

SEGURANÇA
A Organização das Nações Unidas (ONU) define segurança como “uma condição pela qual os Estados consideram que não há perigo de ataque militar, pressão política ou coerção econômica, de modo a que estejam aptos a perseguirem livremente seus próprios desenvolvimentos e progressos”.
Em 1994, a Casa Branca incluiu novos aspectos que ampliaram o conceito americano de segurança nacional. Compreende: a segurança de saúde; a segurança econômica e de propriedade; a segurança baseada em superioridade tecnológica gerada por inovações científicas e de engenharia; as responsabilidades ambientais; e a segurança pessoal.

DEFESA
A defesa é, em consequência, o conjunto de ações para garantir a segurança. Historicamente, preocupava-se com o território, a soberania e os interesses nacionais contra ameaças externas. Baseava-se no seu poder de dissuasão e na projeção de sua expressão militar. É, portanto, multisetorial, abrangente e de interesse de toda a sociedade.

TECNOLOGIAS SENSÍVEIS
Após os eventos de 11 de setembro de 2001, incluíram-se como áreas sensíveis a tecnologia nuclear, a de mísseis, a microeletrônica, a marítima, a de navegação e controle de guiamento, a engenharia química e a biotecnologia, o imageamento remoto com reconhecimento,
a computação avançada, a segurança das comunicações e da informação, os sistemas de laser e de energia direcionada, os sensores, a robótica, a cerâmica avançada e as ligas e metais de alto desempenho. Neste mesmo contexto, ampliou-se a atenção à concessão de permissão para cursos de estudantes estrangeiros.

PAÍSES SEVERAMENTE ENDIVIDADOS
Em 2001 o Banco Mundial considerava como país severamente endividado aquele com serviço da dívida maior do que 220% de suas exportações ou 80% do seu PNB.

PAÍSES MODERADAMENTE ENDIVIDADOS
Em 2001 o Banco Mundial considerava como país moderadamente endividado aquele com serviço da dívida maior do que 132% de suas exportações ou 48% do seu PNB.

INTENSIDADE EM PESQUISA E DESENVOLVIMENTO
É determinada pela razão entre as despesas em pesquisa e desenvolvimento e a produção. É mais elevada nas indústrias de alta tecnologia (Organisation for Economic Co-operation and Development – Science et Technologie et Industrie – Tableau de Bord d’Indicateurs – 1997)

INDÚSTRIA DE ALTA TECNOLOGIA SEGUNDO OCDE
A medida da intensidade tecnológica comporta inicialmente a separação entre as indústrias que produzem a tecnologia e as que a usam intensivamente.
A metodologia usada pela OCDE para separar os desenvolvedores dos usuários da alta tecnologia considera três indicadores: as despesas de P&D, divididas pelo valor agregado; as despesas de P&D, divididas pela produção; e as despesas em P&D, adicionadas às despesas em tecnologias incorporadas nos bens intermediários e nos bens de investimento, divididas pela produção.

As indústrias de manufaturados são classificadas em 4 categorias: alta tecnologia, média-alta, média-baixa e baixa tecnologias. Assim, incluíam:
- Indústrias de alta tecnologia – construção aeronáutica, máquinas de escritório e de calcular, produtos farmacêuticos e aparelhos de rádio, TV e de telecomunicações;
- Indústrias de média-alta tecnologia – material profissional, veículos automóveis, máquinas e aparelhos elétricos, indústria química, outros materiais de transporte, máquinas não-elétricas;
- Indústrias de média-baixa tecnologia – borracha e matéria plástica, construção naval, outras indústrias manufatureiras, metais não-ferrosos, produtos minerais não-metálicos, obras em metal, petróleo e carbono, e siderurgia; e
- Indústrias de baixa tecnologia – papel, impressão e edição, têxteis, vestuário e couro, alimentação, bebidas e tabaco, e madeiras e móveis.

3. MEDIDA DO PODER NACIONAL
O poder nacional era interpretado como poder militar e considerava prioritariamente os recursos naturais, os efetivos militares e o armamento disponível. Já na I Guerra, ampliando-se na II Guerra e nos conflitos que se sucederam, foi preciso considerar uma transformação. Os recursos naturais foram substituídos pelos recursos nacionais, que compreendem, também, os recursos econômicos, humanos, tecnológicos e empresariais.
A capacidade dos Estados de transformar esses recursos nacionais segundo suas estratégias tem condicionantes de:
• natureza econômica - dívida externa, fluxos de capitais externos, exportações limitadas;
• natureza tecnológica - normas internacionais, patentes, acesso a tecnologias sensíveis, e restrições a aquisições de equipamentos e componentes;
• natureza das ameaças externas - tamanho dos desafiantes, dimensão da corrida armamentista, apoio externo para ameaças internas ao Estado;
• natureza dos interesses do Estado - extensão do perímetro de defesa, recursos naturais estratégicos, dispersão política e dependência econômica; e
• natureza dos objetivos políticos - busca de mudanças radicais, busca de recuperação territorial.

Essa capacidade dá a medida do poder nacional e se reflete no poder militar. Para transformar os recursos nacionais em poder da Nação, é fundamental reduzir as restrições externas, adequar a infra-estrutura e ter uma vontade nacional. O Estado tem condições de aumentar o poder militar, quer pela capacidade de conversão, quer pela transformação dos recursos nacionais em recursos estratégicos de emprego militar, desde que amplie seus recursos nacionais e reduza as suas restrições.

Assim, a medida do poder nacional pode ser caracterizada, em última análise, pela capacidade dos países de, em considerando seus recursos naturais, transformá-los em poder. A título de ilustração, merecem atenção os números relativos aos gastos de defesa em relação aos produtos internos brutos (PIBs) de países selecionados, segundo os dados do Banco Mundial de 2003. Em um mundo com PIB total de 31 trilhões de dólares, em 2001, os gastos militares foram de 721 bilhões de dólares, sendo os Estados Unidos da América (EUA) responsáveis por 43% desse total, o que corresponde a 3,1% do PIB americano. Dados históricos indicam que a China teve crescimento médio em seu orçamento de defesa de cerca de 2% do PIB nos últimos dez anos, oscilando entre 20 a 32% de suas despesas governamentais. O Brasil despende apenas 1,5% do PIB em gastos em defesa, correspondendo a menos de 5% das despesas governamentais.

4. CIÊNCIA, GUERRA E INDÚSTRIA DE DEFESA
As ciências são sistemas de conhecimentos puros, conjuntos de enunciados que descrevem simplificadamente o mundo e seus fenômenos. São seguidamente objetos de aplicações práticas, para o bem ou para o mal. Amplamente, aceita-se que essa opção é desconectada dos conhecimentos em si, dependendo da vontade de sua utilização.

Compreender por que as ciências se mantiveram intrinsecamente ligadas às artes militares é simples. Na medida em que as técnicas que elas permitem desenvolver seguidamente possibilitam uma ação de maior alcance, surgem interesses sociais, econômicos ou militares. Simetricamente, as ciências têm oferecido ferramentas novas, em ritmo acelerado, permitindo aumentar sua capacidade de ação. Como exemplo, vale lembrar:
• 1794 -criação de uma escola central de trabalhos públicos, que um ano mais tarde tomou o nome de École Polytechnique;
• 1804 - Napoleão deu status militar à École, e um lema “Pour la patrie, les sciences et la gloire”;
• 1970 - a École tornou-se um estabelecimento público, sob a tutela do Ministério da Defesa da França;
• Napoleão criou o primeiro prêmio, existente até hoje, para a pesquisa que ampliasse o poderio francês;
• Em 1916 o pai da guerra química, Fritz Haber, procurava salvaguardar o conhecimento de suas armas químicas, transferindo seu uso ao combate contra insetos, como forma de assegurar a manutenção do conhecimento;
• Nos EUA, já em 1916, o Presidente Wilson mobilizava as instituições americanas para a pesquisa;
• A V2, desenvolvida pelos alemães para bombardeio à distância, serviu de base para os veículos lançadores de satélites;
• Em 6 de fevereiro de 1946, a União Soviética, no quadro de seus planos para o desenvolvimento no após guerra, declarou que “uma atenção especial será enfatizada na construção de diversos institutos de pesquisa que permitirão à ciência desenvolver as suas forças. Sem nenhuma dúvida, se for disponibilizada aos pesquisadores a ajuda necessária, eles poderão igualar o sucesso de outros países e até ultrapassá-los”.

Os desenvolvimentos de semicondutores, de computadores, das teorias da Matemática e da Física catalisaram o desenvolvimento das grandes potências.

5. QUADRO INTERNACIONAL

ASPECTOS QUE PODEM INTERFERIR NA INDÚSTRIA DE DEFESA NACIONAL (IDN)
Ontem, o poder era sinônimo da capacidade de fazer, produzir e destruir. Era visível, determinado por variáveis quantificadas: o território, a população, as características produtivas, os efetivos e os armamentos militares. Hoje, os elementos que compõem o poder tendem a ser diluídos. São menos tangíveis e dificilmente perceptíveis. Sem dúvida, o poder é dependente da ciência, da tecnologia e da economia.

Ontem, a disponibilidade de armamentos militares podia depender, exclusivamente, de fornecimento externo. Hoje, cláusulas de “end use” e dependência de sobressalentes fazem com que Estados que dispõem de recursos financeiros elevados não sejam capazes de dar continuidade aos conflitos em que se engajam.
Ontem, o poder era concentrado nas mãos do Estado. Hoje, os territórios se fragmentam em unidades menores e a competitividade entre empresas dita os conflitos de interesses (guerra sem mortos).

Entretanto, o neoliberalismo político e econômico não preencheu os anseios de uma sociedade mundial mais justa, nem os dos menos favorecidos. Constata-se um mundo dominante versus mundo dominado. O hiato se acentua. Aumenta o número de Estados empobrecidos e o percentual da população de excluídos. As disputas em torno das fronteiras dos territórios e o ressurgimento dos problemas étnicos chegam a desencadear conflitos. Essas tensões variam conforme as áreas geográficas. Regras rígidas de controle de tecnologias sensíveis são mantidas. Os países industrializados controlam o mercado. Os países emergentes são consumidores e usuários das aplicações das inovações tecnológicas.

Observa-se uma concentração de renda entre três países (EUA, Japão e Alemanha). Com apenas 8% da população, são responsáveis por mais de 50% do PIB mundial. Suas exportações aproximam-se de 30% do total mundial. Esse fenômeno de concentração de renda não é diferente entre as empresas nesses três países, que faturam mais do que o total das maiores 500 empresas do mundo. Constata¬se, também, que a exportação ocorre preferencialmente intrablocos econômicos. Essa desigualdade, com redução de expectativas, leva ao surgimento de grupos antagônicos, que tendem a buscar espaços, mesmo que recorrendo a ilícitos e a ações armadas.

Vive-se sob o impacto das grandes transformações, com interrogações que surgem, por exemplo, a partir dos atentados de 11 de setembro de 2001 e, mais recentemente, a partir da intervenção militar e da ocupação do Iraque.

Merecem reflexões as preocupações mencionadas por Kofi Annan:
• a problemática da ação preventiva e unilateral adotada pelos EUA;
• a possibilidade de que outros Estados sigam posturas semelhantes;
• a preocupação com as novas ameaças à paz, sobretudo as resultantes de ações de grupos terroristas;
• o que se vem denominando “contra-proliferação” – linha de ação que prevê recurso à força militar e vai além das políticas e práticas ditas de “não-proliferação”;
• a definição sobre se a resposta internacional a tais ameaças se dará por intermédio de regimes informais e de participação limitada, como a Proliferation Security Initiative, proposta pelos EUA, ou se é possível capacitar o sistema multilateral de segurança coletiva das Nações Unidas para lidar com essas situações;
• direito de ingerência e formulações assemelhadas, como a responsabilidade de proteger, a segurança humana ou o dever de solidariedade; e
• a atenção conferida ao terrorismo e à proliferação de armas de destruição em massa.

Dominique de Villepin (chanceler francês) assinala que a Guerra do Golfo teria aberto caminho para a consolidação do “droit d´ingérence humanitaire”, que, segundo sustenta, teria motivado as operações de paz da ONU na Somália, no Haiti, em Ruanda, na Bósnia, no Timor Leste e em Serra Leoa. Questiona: “Por que engajar-se aqui e não lá? Quem toma a decisão? Em nome de qual legitimidade?”.

A noção de “ataque preventivo”, contida na nova Estratégia de Segurança Nacional norte-americana, prevê que, se caracterizado o perigo, justifica-se uma ação preventiva determinada pelo próprio Estado que a executa, alijando o sistema normativo multilateral. O contexto das guerras também se modificou. Eram predominantes conflitos entre Estados, geralmente por motivação econômica ou geopolítica. Havia inimigo declarado e conhecido. Os novos conflitos passaram a ter entre suas causas a etnia, a religião, a economia e a informação. Como agentes, organizações não¬governamentais (ONGs) vinculadas, a encobrir ações ilícitas e atores não-Estatais (Bin-Laden). Sua forma de ação é a da guerra assimétrica e do terrorismo. O inimigo passou a ser anônimo, disperso, dissimulado e seu ponto de ação desconhecido (em qualquer lugar, a qualquer momento).

Preocupações com o terrorismo tecnológico dão lugar, por exemplo, a avaliações realizadas em 2001, com a participação da Academia Nacional de Ciência e Engenharia e do Instituto de Medicina, pelo Conselho Nacional de Pesquisas dos EUA e pela Academia de Ciência da Rússia. Essas preocupações foram incorporadas às recomendações adicionais de segurança sugeridas pela Agência Internacional de Energia Atômica em 2003.

6. QUADRO NACIONAL

De uma forma geral, a percepção brasileira é a de que:
• desdobramentos na área da segurança internacional pouco nos dizem respeito;
• dificilmente nos envolveremos em confronto com uma grande potência militar; e
• tampouco se cogita um conflito com um país vizinho.

Isso não significa que se possa prescindir de uma capacidade militar de dissuasão, como, também, de repulsão e preparo para defesa e resistência contra ameaças externas. Cabe ao planejamento estratégico, naturalmente, avaliar a extensão e o grau de atenção a ser dado às ameaças concretas e hipotéticas, presentes e futuras.

Não obstante, as restrições que se possa nutrir em relação a determinados conceitos de segurança não devem impedir que se assumam as responsabilidades em face de fenômenos que afetam a região, como a criminalidade e a violência urbana. Cabe enfrentá¬los com determinação.

6.1 HIPÓTESES DE EMPREGO

A) SEGURANÇA CONTRA AÇÃO DE GRUPOS HOSTIS
Ações desse tipo requerem segurança do Estado, permitindo uma interação com as Forças Armadas e outros órgãos de segurança dos países vizinhos. São alvos potenciais de grupos hostis:
• a construção e interligação de estradas e outras vias de transporte;
• as redes de eletricidade, telecomunicações, gasodutos e oleodutos.

Essa interação poderá criar ou aprofundar a confiança mútua e o estabelecimento de metodologias e procedimentos de cooperação sistêmica na área de segurança.

B) REFLEXOS DE CONTRABANDO
A região platina não apresenta maiores problemas na área da defesa, somente requerendo certos cuidados na área de segurança. Mas, com a aproximação crescente entre o Mercosul e os países da Comunidade Andina de Nações, a região amazônica passa a ter uma importância ainda maior.

C) FRONTEIRA OESTE
A região que vai do Pantanal ao Amapá passa a ser o centro do novo processo de integração. E a região é reconhecidamente frágil e problemática nas áreas de segurança e defesa, mas esta nova realidade permite superar a situação de deslocar recursos para uma área anteriormente considerada periférica e menos importante. A integração sul-americana tem sido objeto de atenção especial do governo brasileiro.

D) A PARTICIPAÇÃO DO BRASIL EM MISSÕES DE PAZ
Um destaque que figura na Política de Defesa Nacional (1996) como iniciativa que faz projetar o Brasil como interlocutor válido na política internacional é a contribuição para a manutenção da paz e da segurança coletiva. É dentro dessa concepção que o Brasil participa, como um dos dez maiores contribuintes, das Missões internacionais de Paz da ONU. Claramente, o Brasil privilegia regiões prioritárias de sua política externa, como a América Latina e a África, entorno pacífico de sua vizinhança.

E) A AMAZÔNIA NO QUADRO DAS PREOCUPAÇÕES DE DEFESA E SEGURANÇA DO BRASIL.
A visão brasileira em relação à segurança da Amazônia não identifica ameaças convencionais, do gênero que oporia um Estado a outro, mas reconhece a existência de determinados fatores de risco, entre os quais a desigual e em geral rarefeita ocupação humana na região, que pode favorecer a prática de ilícitos transnacionais, em especial o tráfico de armas e de drogas.

Segundo os mais acreditados analistas estratégicos, em suas abordagens simplistas, existem três espaços abertos na Terra para projetar a aquisição de recursos, a saber: o Canadá; a Sibéria; e o norte do Brasil, caracterizado pela grande Amazônia. Fatores externos ao espaço amazônico constituem elementos adicionais de risco, expressos como: “soberania limitada”, “espaços sem governo”, ou, ainda, “Estados falidos”.
Devido a condições climáticas, o espaço nobre é a Amazônia. Imaginar que o Brasil, em nome dos mais altruísticos interesses da humanidade, não vai sofrer firmes pressões é, no mínimo, uma ingenuidade estratégica.

A melhor defesa da Amazônia reside na implementação de três vertentes de ação: o fortalecimento da presença militar; a integração da infra-estrutura física; e a cooperação entre os países que dividem a bacia hidrográfica.

Três diretrizes constituem, em síntese, o tripé em que se deve assentar a política de segurança e defesa do Brasil para a Amazônia: valorização da presença militar, integração da infra-estrutura física e desenvolvimento através da cooperação. A segurança e a defesa da Amazônia brasileira encontram sua principal garantia na coordenação de esforços com os países amazônicos, com vistas a ampliar a cooperação entre as diferentes Forças Armadas e a construir sociedades mais prósperas e mais justas.

6.2 RESTRIÇÕES

Diversas restrições externas estão presentes no desenvolvimento do País. A mais relevante é de natureza econômica e é fortemente afetada pela dívida externa e pela dependência de investimentos estrangeiros complementares para o desenvolvimento. O Brasil é classificado pelos critérios do Banco Mundial como severamente endividado.

Procurando reduzir restrições ao desenvolvimento tecnológico, o Brasil fez um esforço para inserir-se em praticamente quase todos os regimes de não-proliferação de armas de destruição em massa e para participar, como interlocutor válido e confiável, no processo decisório da política internacional para a construção e a manutenção da paz e da segurança coletiva. A Constituição de 1988, artigo 21, proíbe o uso da energia nuclear para fins que não sejam exclusivamente pacíficos, renunciando ao uso de armas nucleares.

O BRASIL:
• assinou e ratificou o Tratado de Não-Proliferação Nuclear - TNP;
• assinou e ratificou o Tratado para a Proibição Completa dos Testes Nucleares – CTBT –, em julho de 1998;
• passou a atuar na Comissão Preparatória da futura organização, integrando o Grupo de Supridores Nucleares que coordena as políticas de exportações de bens e equipamentos nucleares;
• apresentou, em 1996, projetos de resolução na ONU reconhecendo o estatuto de desnuclearização criado pelas quatro Zonas Desnuclearizadas (Tlatelolco, Rarotonga, Bangkok e Pelindaba) dentro do quadro geral de desarmamento, e associando¬se à Coalizão da Nova Agenda com a Declaração em Direção a um Mundo Livre de Armas Nucleares;
• é membro originário da Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPAQ), criada em abril de 1997, encarregada de acompanhar a implementação da convenção (1993);
• assinou a Convenção para a Proibição de Armas Biológicas. O Brasil é integrante desde 1973 e ativo participante nas discussões sobre o fortalecimento e criação de um sistema de verificação do cumprimento das obrigações assumidas pelos Estados, ainda mais diante da possibilidade de grupos utilizarem armas biológicas e bacteriológicas;
• é signatário do Regime de Controle de Tecnologias de Mísseis
• MCTR – desde 1995.

Ser signatário de tratados e convenções é condição considerada necessária para a redução de restrições, porém não é suficiente como garantia de acesso a materiais, equipamentos e tecnologias sensíveis.
A ausência de continuidade de diversos projetos e o abandono completo de tecnologias dominadas estão entre as mais fortes restrições ao progresso científico-tecnológico e industrial. Acresce a ausência do poder de compra do Estado, usado pelos países industrializados como alavanca do desenvolvimento.

7. POLÍTICA

7.1 ANTECEDENTES
Pode-se abordar desde a visão de Dom João VI, ao criar arsenais, chegando às decisivas contribuições das instituições militares de ensino e pesquisa (IME, ITA, ARAMAR, etc.) que, buscando uma tecnologia militar, desenvolveram, simultaneamente, uma contribuição científica e tecnológica para o Brasil, em estreita cooperação com outras instituições civis.

Na década de 70, a indústria de defesa nacional atingiu um patamar nunca antes alcançado, com a ENGESA, IMBEL, EMBRAER, AVIBRAS, e participação da METAL LEVE, ELETROMETAL, e miríades de outras empresas de pequeno e médio porte, algumas com origem em nossas universidades e centros de pesquisa. Os desenvolvimentos atingidos permitiram a produção de material bélico e não-bélico, entre outras, nas seguintes áreas: sistema de comunicações, eletrônica, navegação, veículos blindados, foguetes, mísseis e aviões. Esse processo teve como conseqüência o desenvolvimento tecnológico, a melhoria das condições de produção indústrial, a geração de emprego e reflexos econômicos, em especial nas exportações.

7.2 ATUALIDADE
No final da década de 1980 e início da de 1990, a indústria de defesa nacional retrocedeu, quase parou, e, até o presente momento, não mais se recuperou. Pode-se especular sobre duas causas:
• pressões internacionais restringindo a parcela do orçamento dedicado às Forças Armadas como condicionante para apoio econômico financeiro; e
• mudança de enfoque estratégico e governamental, de construir o Brasil como uma potência média para uma abordagem sem atritos internacionais.
Restaram algumas empresas, a EMBRAER e a AVIBRAS, por exemplo, que buscaram janelas de oportunidade e fizeram um excepcional esforço de adaptação para conseguir se manter em padrões elevados. Restaram, também, as de pequeno porte (revólveres, espingardas, fuzis, metralhadoras leves). Entre as tecnologias duais, em fase de desenvolvimento tecnológico e consolidação, ressaltam-se as atividades da Marinha do Brasil no setor nuclear e do programa espacial brasileiro, adaptadas às condições restritivas internacionais.
Essas atividades não contemplam, em grande parte, a publicação ou a divulgação de resultados, processos e métodos utilizados em seu desenvolvimento. Em conseqüência, não se adaptam aos critérios de avaliação estabelecidos pelos órgãos de fomento ao ensino e pesquisa do País, dificultando a participação de pesquisadores de instituições diversas daquelas que estão conduzindo a pesquisa, uma vez que esses critérios são fundamentais para os integrantes das carreiras científicas e tecnológicas. Ocorre que, na Indústria de Defesa Nacional (IDN), os pesquisadores não podem ter como objetivo a publicação e a produção acadêmica, pois seus objetos são muitas vezes de divulgação restrita e possuem implicações estratégicas ou comerciais. Na fase atual, e nas subseqüentes, é natural a participação dos mesmos profissionais na pesquisa, no desenvolvimento de protótipos e na produção.

7.3 CONSTATAÇÕES SOBRE A INDÚSTRIA DE DEFESA NACIONAL (IDN)
O exame do desenvolvimento das indústrias de defesa no País e no exterior conduz a quatro assertivas.
Primeira assertiva: ela pode e deve ser desenvolvida vis-à-vis o mercado e a concorrência externa. Talvez o único país que não dependa consideravelmente de um mercado externo seja os EUA, porque as demandas de suas Forças Armadas são muito altas. A presença no mercado externo depende de ações políticas de governo, de produtos de excelente qualidade e de condições de atender à própria estrutura de defesa nacional.

Merecem análise e reflexão as IDNs da Suécia e Suíça, potências médias, sociedades altamente desenvolvidas, com políticas externas, dentro de suas concepções estratégicas, comprometidas com a paz mundial e com os direitos humanos e, no entanto, com sofisticadíssimas IDNs, capazes de exportar, vender e alavancar seus mercados de equipamentos militares.

Segunda assertiva: a IDN, de modo insofismável, impulsiona o desenvolvimento tecnológico de um país. São conhecidas as aplicações da tecnologia nuclear na geração de energia, na indústria, na medicina e na agricultura (sem chegar à produção de artefatos, enfatizando este ponto, mas sem temor de evitá-los), na tecnologia espacial, com aplicações nas comunicações, na meteorologia e na observação do universo (com origem nas V-2); e de tecnologias de criptologia, sem dúvida, do ramo da indústria de defesa nacional, e agora, mais do que nunca, de aplicação dual, num mundo dependente de comunicações rápidas num mercado globalizado.

Terceira assertiva: a indústria de defesa nacional tem seu completo sentido, a um só tempo, por ser um meio e um objetivo estratégico. Podem ser citadas, como exemplos, a produção de energia e a criação de uma força de dissuasão.

Quarta assertiva: desenvolvimento autônomo. Não se pode omitir que a autonomia total é inviável. A associação com outros países deve ser sempre considerada. Devem-se manter em vista as vulnerabilidades decorrentes dessa associação. A consideração da existência, ou não, de mercado interno não pode (não deve) ser prioritária, porque a não-capacitação e a ausência da indústria de defesa nacional, significará, em coerência com as assertivas anteriores, a impossibilidade de o Brasil, quando – e se necessário – for obrigado a defender-se, passiva ou ativamente, com as estratégias da dissuasão ou da projeção de poder, estar completamente dependente de outros centros de poder e, portanto, incapacitado.

8. ESTRATÉGIA

Continuidade – deve ser assegurada a continuidade das atividades nos níveis de pesquisa, desenvolvimento e produção, buscando garantir o domínio e a manutenção do conhecimento adquirido. Características de longo prazo – necessariamente deve ter características de longo prazo, deve ser desdobrada em várias fases, e deve ser reajustada periodicamente. Este desdobramento deve considerar ser o Brasil classificado, na atualidade, como severamente endividado.

Necessidade de constantes atualizações – é proposto um horizonte de vinte anos, deixando clara a necessidade de constantes atualizações em função da evolução crescente da ciência e da tecnologia e das mudanças políticas, econômicas e sociais no país e no mundo. Adequação às necessidades e pretensões futuras – há que se considerar que os países periféricos, com status de potência média, buscam uma maior participação, que seja adequada às suas necessidades e pretensões futuras.

Fora do círculo fechado – considera-se fundamental sair do círculo fechado estabelecido pelas grandes potências, sem hostilizá¬las, tendo como base a identificação das necessidades nacionais, em particular, neste caso, das Forças Armadas. A estratégia deve buscar desenvolvimento autônomo sem xenofobia.
Dimensionamento do objetivo - deve-se procurar dimensionar o objetivo tendo em vista os aspectos econômicos, os mercados interno e externo, e não perdendo de vista que, em todos os países desenvolvidos, a indústria de defesa nacional alavanca a ciência e a tecnologia.

Redução de vulnerabilidades – num primeiro momento, deve-se concentrar na redução de vulnerabilidades e evitar a possibilidade de chantagens de apenas um fornecedor. Estar-se-á cooperando para promover o desenvolvimento científico, tecnológico e econômico. Competitividade não prevalente – não se deve perder de vista que a competitividade atualmente presente em praticamente todos os segmentos da economia não pode ser prevalente na IDN. Ao contrário, numa primeira fase, não deve ser um elemento de decisão e, sim, uma referência.

Usos duais – a publicação de 2002 “A ciência e a guerra - 400 anos de história compartilhada”, deixa evidente a afirmação, nem sempre corretamente compreendida, dos usos duais do desenvolvimento científico e tecnológico.

9.CONCLUSÃO

Nos países industrializados, o Estado é o grande investidor em ciência e tecnologia, em particular a destinada à IDN, e o grande mercado consumidor. Verifica-se que a IDN é um dos setores que mais recebe influência das transformações sócio-econômicas, estratégicas e tecnológicas. Requer um acompanhamento contínuo, que conduz à proposta da criação de um grupo permanente de acompanhamento de macrotendências científicas, tecnológicas e estratégicas. Os relatórios desse grupo permitiriam uma constante atualização das áreas específicas de ensino, pesquisa, desenvolvimento de protótipos e industrialização. A título de contribuição, é apresentada, em anexo, lista de tecnologias consideradas catalisadoras do desenvolvimento no Século XXI.

Fácil é produzir listas de necessidades de equipamentos. Fundamental, entretanto, é adaptá-la às necessidades do estabelecimento de uma infra-estrutura nacional capaz de reduzir as vulnerabilidades em matéria de defesa e solidificar uma indústria adequada às condições internas, com projeções externas e visão constante de futuro.

A primeira pergunta é como financiar a IDN. Começar pequeno, atender ao mercado interno, e ser compatível com os recursos disponíveis. É útil incorporar as necessidades do material indispensável para segurança pública, anseio da sociedade. Sem dúvida, neste caso, estar-se-ia ampliando os reflexos na sociedade civil das ações da defesa, deixando o País de ser mero importador, economizando divisas, aumentando sua potencialidade como exportador, e, conseqüentemente, disponibilizando recursos para atender a outras necessidades. Englobaria o desenvolvimento de armas não-letais, num escopo de tecnologias duais.

Rex Nazaré Alves
1. CURSOS REGULARES
- Professor das Cadeiras de Tecnologia das Radiações e Segurança, Física Nuclear, de Dosimetria, de Introdução à Engenharia Nuclear, de Proteção Radiológica, do Curso Mestrado em Engenharia Nuclear do Instituto Militar de Engenharia, em diversos períodos de 1964, e de 1990 até hoje.
- Professor da Cadeira de Física Nuclear do Curso de Ciências Nucleares da Faculdade de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - 1965 - 1966.
- Professor de Mecânica Quântica aplicada à Física de Neutrons no Curso de Mestrado em Engenharia Nuclear - COPPE/UFRJ - 1968.
- Professor de Física Nuclear II, do Curso de Mestrado em Engenharia Nuclear - COPPE/UFRJ -1969.
2. CONFERÊNCIAS
- Diversas no: Congresso Nacional (Câmara e Senado), COPPE/UFRJ, Instituto de Biofísica da UFRJ, Escola Superior de Guerra, Estado Maior das Forças Armadas, Escola de Guerra Naval, Escola de Comando e Estado Maior do Exército, Escola de Comando e Estado Maior da Aeronáutica, Associação Brasileira de Energia Nuclear, Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ, e Agência Internacional de Energia Atômica.
3. ORIENTAÇÃO DE TESES DE MESTRADO E DOUTORAMENTO
Orientador de diversas teses de Mestrado e Doutoramento, no Brasil (COPPE e Instituto Militar de Engenharia) e na França (IPAG -1999).
4. EXPERIÊNCIA PROFISSIONAL EM PESQUISAS NACIONAIS
4.1 COMO PESQUISADOR
- Estagiário da Carreira Didático Científica da Divisão de Física Nuclear do Instituto de Engenharia Nuclear da Comissão Nacional de Energia Nuclear - 1964
- Pesquisador Auxiliar do Instituto de Engenharia Nuclear da CNEN - 1965
- Pesquisador Assistente do Instituto de Engenharia Nuclear da CNEN - 1967
- Chefe da Seção de Física de Fissão do Instituto de Engenharia Nuclear da CNEN - 1967/1968
- Pesquisador Associado da Comissão Nacional de Energia Nuclear - 1968 Energia Nuclear - CNEN - 1969/1973.
4.2 COMO ADMINISTRADOR EM PESQUISA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA
- Diretor do Laboratório de Dosimetria da Comissão Nacional de Energia Nuclear - CNEN - 1969/1973.
- Membro da Comissão de Radioterapia da Divisão Nacional do Câncer do Ministério da Saúde - 1973.
- Diretor do Instituto de Radioproteção e Dosimetria da CNEN - 1974/1975.
- Presidente da Comissão de Estudos-62 da Associação Brasileira de Normas Técnicas - 1970/1974 .
- Coordenador do Programa Nacional de Formação de Recursos Humanos para o Setor Nuclear (PRONUCLEAR) - 1975 a 1982.
- Membro da Comissão Deliberativa da Comissão Nacional de Energia Nuclear - 1975/1990.
- Diretor Executivo da Comissão Nacional de Energia Nuclear - 1975/1982.
- Presidente da Comissão Nacional de Energia Nuclear - Setembro de 1982 a Março de 1990.
- Membro do Conselho de Administração da Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais -CPRM - 1982/1990.
- Membro do Conselho Técnico-Científico do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN) da CNEN - 1982 a Março de 1990.
- Membro do Conselho Superior de Energia Nuclear - 1988 a Março de 1990.
- Membro da Comissão Especial para o Desenvolvimento Tecnológico do Estado do Rio de Janeiro - 1999 a 2000.
- Chefe do Departamento de Tecnologia da ABIN - GSI/PR - Junho de 2000 a Junho 2003.
- Assessor Especial do Ministro de Estado Chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República - julho de 2003 a abril de 2005.
- Chefe do Departamento de Ciências Fundamentais, Radiações e Meio Ambiente do Instituto Militar de Engenharia - de 1998 até abril 2004.
5. INTERNACIONAIS
- Membro do Grupo Consultivo da Agência Internacional de Energia Atômica - AIEA - em SSDL (Secondary Standard Dosimetry Laboratory) - 1973/1974.
- Chefe das Delegações Brasileiras das Seções da Conferencia Geral da Agência Internacional de Energia Atômica - 1982 a 1989.
- Governador do Brasil na Junta de Governadores da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) da ONU - 1982/1990.
- Membro da Comissão Governamental para Implementação do Acordo de Cooperação Técnica Brasil/Argentina - 1986 a março de 1990.
6. TRABALHOS PUBLICADOS
- 39 Trabalhos publicados no Exterior e 25 no Brasil
7. ASSOCIAÇÕES A QUE PERTENCE
- Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
- Sociedade Brasileira de Física
- Associação Brasileira de Energia Nuclear
- New York Academy of Sciences - EUA (Membro efetivo)
- American Association for the Advancement of Science - EUA

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Erik Prince, o homem da Blackwater

Vanity Fair: No mundo da Blackwater
Erik Prince, o homem da Blackwater

Empresário, soldado, espião

Adam Ciralsky, Vanity Fair, jan. 2010 – traduzido por Caia Fittipaldi

Erik Prince, recentemente indiciado como membro ativo de um programa de ‘assassinatos seletivos’ da CIA, ganhou notoriedade como presidente da empresa-gigante de segurança privada Blackwater, empresa que é hoje objeto de investigação federal acusada de suborno, julgamento privado e tortura de cinco ex-empregados, com julgamento marcado para o mês de julho. Em movimento que visa a responder aos que o criticam, o milionário ex-fuzileiro de grupo de elite da marinha dos EUA convida o jornalista para acompanhá-lo até o coração de sua empresa, nos EUA e no Afeganistão, para mostrar o papel que tem na guerra dos EUA contra o terror.

“Minha empresa e eu nos colocamos a serviço da CIA, em algumas missões muito perigosas” – diz Erik Prince, enquanto corre os olhos pela fortaleza onde vive, cercado por 7 mil acres, numa propriedade na área rural de Moyock, Carolina do Norte. “Mas quando parece politicamente conveniente a uns ou outros, sou sempre o primeiro que empurram para debaixo do ônibus”. Prince, fundador da Blackwater, a mais conhecida empresa mundial de prestação de serviços militares privados está soltando fogo pelas ventas milionárias. Quer desabafar. E quer que todos ouçam o desabafo.

Erik Prince enfrenta hoje um problema de imagem – desses que não há publicidade comprada na Avenida Madison [1] que resolva. Aos 40 anos, herdeiro de fortuna construída em Michigan com rede de lojas de revenda de peças para automóveis e ex-fuzileiro do corpo de elite da Marinha dos EUA, conseguiu a façanha de ser crucificado no plano real e, também, no plano simbólico.

Em Washington, Prince tornou-se bode expiatório para todos os erros e tragédias do governo Bush no Iraque – embora alguns dos feitos da Blackwater tenham sido citados para neutralizar as críticas.

Deputados, senadores, advogados, grupos de direitos humanos e noticiários descreveram Prince como aproveitador, beneficiário da guerra, que reuniu uma quadrilha de bandidos e milicianos capaz de derrubar governos. Seus empregados têm sido repetidamente acusados de uso excessivo, eventualmente mortal, de força, no Iraque. De fato, vários iraquianos morreram em confrontos com o ‘exército’ da Blackwater. E em novembro, ao mesmo tempo em que um Grande Júri na Carolina do Norte analisava longa lista de acusações contra a empresa, meia dúzia de processos civis fermentavam no estado da Virginia; e, enquanto cinco ex-gerentes da Blackwater preparavam-se para enfrentar julgamento, acusados da morte de 17 iraquianos, o New York Times publicou, em matéria de primeira página, que a empresa de Prince, no dia seguinte à tragédia, tentara subornar funcionários do governo do Iraque para que mudassem seus depoimentos.

São acusações que, para Prince, não passam de “mentiras (…) sem provas, sem substância, sem documentos [e] anônimas” (A marca Blackwater está de tal forma associada a crimes em geral, qualquer tipo de crime, que até os Talibã fizeram circular teorias conspiratórias, segundo as quais a empresa de Prince estaria operando infiltrada também em ações com suicidas-bomba no Paquistão).

Simultaneamente, em Hollywood, cidade que ama acima de tudo no mundo um vilão boa-pinta, Prince, louro, com físico e ares de Daniel Craig, tornou-se obsessão de batalhões de roteiristas. No filme State of Play, uma empresa-clone da Blackwater (PointCorp.) usa sua rede de mercenários para vigilância ilegal e assassinatos de encomenda. Na série 24 horas, Jon Voight encarnou Jonas Hodges, versão apenas muito superficialmente diferente de Prince, cuja empresa (Starkwood) ajuda um senhor-da-guerra africano a contrabandear gás venenoso a ser empregado contra alvos norte-americanos.

Mas a verdade sobre Prince talvez alcance magnitudes mais estranhas que qualquer ficção. Nos últimos seis anos, parece ter vivido vida aterrorizantemente dupla. Publicamente, trabalhou como presidente e diretor da Blackwater.

Nos planos privado e secreto, opera como superagente da CIA, ajudando a planejar, financiar e executar operações que vão desde infiltrar seus funcionários em áreas de “acesso negado” – locais nos quais a inteligência oficial dos EUA não consegue entrar –, até reunir equipes cujos alvos são membros da al-Qaeda e seus aliados.

Prince, segundo fontes que conhecem suas atividades, trabalha como ativo da CIA: numa palavra, como espião. Enquanto sua empresa se ocupa em fazer jus aos mais de 1,5 bilhão de dólares em contratos assinados com o governo entre 2001 e 2009 – atuando, dentre outras funções, como uma espécie de guarda pretoriana da segurança do pessoal da CIA e do Departamento de Estado além-mar – Prince tornou-se uma espécie de “Faz-Tudo” na guerra ao terror. Seu acesso a forças paramilitares, armas e aviões, e uma infatigável ambição – atributos contra os quais se mobilizam seus críticos –, tornam Prince extremamente valioso para a inteligência dos EUA. (…)

Mas Prince, com novo governo no poder e os inimigos fechando o cerco, parece estar finalmente saindo do frio. No outono passado, por mais que raramente conceda entrevistas, Prince decidiu que era chegada a hora de contar sua versão da história – para responder à chuva de acusações, para revelar exatamente o que fizera à sombra do governo dos EUA e para apresentar seus argumentos. Também espera poder dizer porque, agora, está afastando-se de todo aquele passado.

Com isso em mente, convidou Vanity Fair para visitar seu campo de treinamento na Carolina do Norte, os escritórios em Virginia e os postos avançados no Afeganistão. Parece boa ocasião para saber o que planeja e oportunidade que não se desperdiça.

Personalidade Dividida

Erik Prince pode ser homem difícil de avaliar – como amálgama de caricaturas contraditórias. Foi dito “cristão suprematista”, favorável ao assassinato de civis iraquianos, mas financiou a construção de mesquitas no Oriente Médio e mantém um orfanato muçulmano no Afeganistão. Ele e sua família há muito tempo apóiam causas dos conservadores, financiam candidatos de direita e relacionam-se com evangélicos, mas o próprio Prince diz-se libertário e é católico romano praticante. Muitas vezes dito arrogante e recluso – um Howard Hughes, sem o TOC [Transtorno Obsessivo-Compulsivo] – participa de competições em que se combinam montanhismo-de-bicicleta, corrida, caiaquismo oceânico e rapel.

O denominador comum, aí, é a intensidade incansável, como se jamais desligasse. Sentado no fundo de um Boeing 777 a caminho do Afeganistão, passa os olhos num exemplar de Defense News, enquanto o filme Busca Implacável (2008, Taken) brilha no sistema de televisão de bordo. No filme, Liam Neeson faz o papel de um agente aposentado da CIA, que organiza ação agressiva de resgate, quando a filha é sequestrada em Paris. O personagem de Neeson alerta os sequestradores de sua filha: “Se estão querendo resgate, aviso que não tenho dinheiro. O que tenho é um conjunto de habilidades (…), do tipo que fazem de mim o pesadelo de gente como vocês. Devolvam minha filha. Se não devolverem, eu procuro vocês, acho vocês e mato todos.”

Prince comenta: “Usei esse filme para ensinar minhas filhas.” (Pai de sete, Prince casou-se novamente depois de a primeira esposa morrer de câncer, em 2003.) “Queria que elas entendessem os perigos que há à nossa volta. E queria que soubessem como eu responderia.”

Impossível evitar a impressão de que Prince vê-se como predestinado. Aparece até nas histórias mais pessoais. Durante o vôo, conta que estava em Cabul em setembro de 2008, e recebeu telefonema, às 2h da manhã, da esposa, Joanna. Charlie, filho de Prince, então com um ano, caíra na piscina. O irmão, Christian, então com 12 anos, tirou-o da água, roxo e sem respirar; aplicou-lhe técnicas de ressuscitação e salvou o irmão. Christian e três irmãos haviam feito o curso de primeiros socorros, certificado pela Cruz Vermelha, no campo de treinamento da Blackwater.

Mas a história continua, porque havia poderes superiores em ação, naquela noite. Ansioso para chegar logo à casa, Prince descartou o itinerário regular, que implicava passar uma noite no hotel Marriott em Islamabad, e encontrou um vôo direto. Naquela noite em que Prince dormiria no hotel, o local foi alvo de ataque terrorista à bomba, que matou mais de 50 pessoas. Prince diz, como se fosse simples: “Christian salvou a vida de Charlie e Charlie salvou a minha.” Às vezes, a convicção de que a história reserva-lhe lugar especial é quase evangélica. Pressionado a falar sobre os que o acusam de ser mercenário – palavra que detesta –, desfia uma lista de militares não regularmente alistados, dentre os quais, Lafayette, aliado dos colonos durante a Guerra da Independência.

O estado padrão, em Prince, é a prontidão. Vive de dentes cerrados e músculos tensos. Não relaxa e não descansa. À espera na fila de revista no aeroporto Dulles, algumas horas antes, Prince recita uma homilia: “Cada vez que um norte-americano passa pela segurança, gostaria que parasse e pensasse ‘O que o governo dos EUA faz que tanto perturba os terroristas?’ Equipes de desarme, drones Predator, esquadrões da morte. Tudo é a mesma luta.”

Não é só empáfia. E o próprio Prince é familiarizado com vários desses recursos. Como outros mercenários, conhece as dificuldades de comandar uma empresa que para muitos não passa de ‘agência de aliciamento de bandidos e empregos temporários’. Muitos de seus contratados deixaram postos militares ou nos serviços de inteligência, atraídos pelos salários muitas vezes superiores para trabalho semelhante. ‘Trabalho’, aí, é proteger vidas, defender vidas e, sendo preciso, matar. Para encontrar os quadros de que precisa, Prince teve de reunir inúmeros veteranos condecorados, tanto quanto tipos mais sinistros, quadrilheiros, assaltantes e espiões, dentre outros.

Erik Prince voa sempre em aviões de carreira. Não só por ser mais barato (“Por que eu teria de pagar para trabalhar? Vôo normalmente, e chega-se à mesma hora”) mas, também, porque atrai menos atenção. Considera-se homem marcado. Classifica os diplomatas e dignitários que a Blackwater protege como “padrão Al-Jazeera de valor”, o que significa, segundo ele, que “bin Laden e seus bandidos adorariam matá-los em ação espetacular e mostrar pela televisão, em todo o mundo.”

Saindo do avião no aeroporto internacional em Cabul, Prince recebe tratamento, ele também, pelo “padrão Al-Jazeera de valor”. É imediatamente metido num carro que o esperava e que o leva até um segundo carro, algumas centenas de metros adiante, uma minivan surrada, absolutamente local, com bichinhos e cartões com orações pendurados ao espelho retrovisor. A equipe de projetos especiais da Blackwater no Afeganistão é responsável pela segurança de Prince quando está no país. Exceto pelo idioma, os homens são absolutamente idênticos a todos os afegãos que se veem pela rua. Têm longas barbas e turbantes e usam a roupa tradicional, de camisa até a canela, sobre calças bufantes. Removem os óculos escuros de Prince, vestem-lhe colete à prova de balas e dão-lhe trajes afegãos para que se troque. Entregam-lhe também um aparelho de rastreamento que envia sinais sobre sua localização e um telefone celular programado para chamar o centro de operações táticas da Blackwater.

Já na van, a equipe faz-lhe um briefing de segurança. Com fotos de satélite da área, revisam toda a rota até a sede da Blackwater e mostram a ele onde há armas e munição dentro da van. Os homens o previnem de que, caso sejam incapacitados ou mortos em emboscada no caminho, Prince deve assumir o controle das armas e apertar o botão vermelho junto ao freio de emergência: assim enviará um sinal eletrônico silencioso de alarme, pedindo reforços.

Falcões Negros e Zepelins

A Blackwater tem origem humilde, quase simplória. A empresa tomou forma nas turfeiras de Moyock, Carolina do Norte – nada que se assemelhe a ninho de empresas que interessem à Defesa como prestadoras de serviços secretos.

O pai de Prince morreu em 1995, de ataque cardíaco (o pastor evangélico James C. Dobson, fundador da igreja conservadora “Focus on the Family”, fez a oração para encomendar o corpo). Edgar Prince deixou de herança importante negócio de fabricação de peças para automóveis em Holland, Michigan, com 4.500 empregados e ampla linha de produtos, de visor antirreflexo a abridor programável de portas de garagens. Erik, 25 anos, servia como fuzileiro em corpo especial da Marinha (serviu no Haiti, no Oriente Médio e na Bósnia), e nem ele nem as irmãs tinham condições de assumir a empresa. Venderam a Prince Automotive por US$1,35 bilhão.

Já há algum tempo Erik Prince e amigos fuzileiros, de fato, conversavam sobre a ideia de criarem uma empresa de treinamento integral de fuzileiros, que substituísse a colcha de retalhos de instituições de treinamento existentes. Em 1996, Prince foi dispensado com honras do seu corpo de fuzileiros e começou a comprar terras na Carolina do Norte. “A ideia não era só vender serviços para a Defesa, em si”, diz Prince, completando a imagem do que pareceria uma espécie de Disneyland para machos-alfa. “Eu pensava num campo de treinamento obrigatório para militares e, sobretudo, para a comunidade de operações especiais.”

O negócio andou devagar. Os fuzileiros da Marinha logo apareceram – em janeiro de 1998 – mas eram poucos e, quando o Centro Blackwater de Alojamento e Treinamento foi oficialmente inaugurado, em maio daquele ano, amigos e conselheiros de Prince acreditavam que ele estivesse enterrando bom dinheiro em terreno ruim. “Muita gente dizia ‘Não passa de acampamento para meninos ricos’”, diz Prince. “Não entenderam o que eu estava fazendo.”

Hoje, o local é centro de uma rede de instalações onde são treinadas cerca de 30 mil pessoas por ano. Prince, proprietário de um avião-robô de dimensões zepelinescas e que gastou 45 milhões para construir uma frota de veículos de transporte blindados e à prova de bomba para conduzir seu pessoal, viaja seguidamente para o campo pilotando ele mesmo seu Cessna Caravan, que decola de sua casa na Virginia. O campo de treinamento tem pista privada de pouso.

Os hangares abrigam um verdadeiro zoológico de aviões de guerra: helicópteros Bell 412 (usados para seguir ou conduzir diplomatas no Iraque), helicópteros Black Hawk (atualmente passando por processo de adaptação para atender às exigências de segurança de um cliente de um dos estados do Golfo), um avião Dash 8 (que transporta soldados e veículos no Afeganistão). No campo de treinamento, com mais de 52 cenários, há vilas virtuais desenhadas para mostrar todos os tipos imagináveis de ameaça real: pequenas praças cobertas de carros explodidos, situadas junto a cruzamentos de rodovias e portos.

Num desses cruzamentos, equipes vestidas como a SWAT atiram com metralhadoras, rifles e pistolas; noutro, oficiais de polícia deslocam-se ao longo da mais longa estrada artificial do mundo, ao longo da qual e em cujos acostamentos explodem, para efeito de treinamento, todos os tipos de minas terrestres e bombas.

Em consonância com o nome original da empresa, o prédio central, de pedra, vidro, concreto e toras de madeira, parece de fato o centro de um acampamento, ou um supermercado de aluguel de material para camping com atenção especial ao setor de esteróides. Aqui e ali há detalhes especialmente projetados, como maçanetas em forma de cano de espingarda. Nas mesas do salão de entrada, onde, noutras empresas, encontrar-se-iam exemplares de Us Weekly, a Blackwater oferece revistas especializadas em contraguerrilha, com matérias de capa do tipo “Como Destruir a Al-Qaeda.”

A verdade é que sem Al-Qaeda não existiria Blackwater. A Al-Qaeda pôs a Blackwater no mapa. Nos dias imediatamente seguintes ao ataque ao navio USS Cole, dos EUA, em outubro de 2000, no Iêmen, a Marinha procurou Prince, dentre outras empresas, em busca de retreinamento para seus marinheiros, para o caso de ataques corpo a corpo, ou de curta distância. (Até hoje, diz a empresa, cerca de 125 mil membros do corpo da Marinha já passaram por seus programas). Além de engordar o caixa, o contrato com a Marinha ajudou a Blackwater a construir um banco de dados de militares aposentados – muitos dos quais veteranos das forças especiais – que poderiam ser recrutados como instrutores.

Quando a al-Qaeda atacou no território dos EUA dia 11/9, diz Prince, sentiu que tinha obrigação ou de realistar-se ou de oferecer-se para trabalhar para a CIA. Diz que se apresentou. “Fui rejeitado”, admite, com uma careta ante a ironia de se ter apresentado como recruta à agência que, mais tarde, dependeria dele. “Disseram que minhas qualificações ‘duras’ em campo não eram suficientes”. Indomável, decidiu orientar o cursor de ofertas de emprego na direção de uma convocação para o que, em seguida, seria convertido, essencialmente, em exército privado.

Depois dos ataques terroristas em Nova York, a empresa de Prince passou a trabalhar para o Departamento de Defesa, oficialmente, não clandestinamente, embora sempre em relativa obscuridade, em ações no Afeganistão e, depois da invasão pelos EUA, também no Iraque. Então aconteceu o 31/3/2004. Nesse dia, os guerrilheiros emboscaram quatro de seus empregados na cidade iraquiana de Fallujah. Os homens foram mortos a tiros, os corpos incendiados. Os cadáveres destroçados de dois deles foram pendurados em uma ponte sobre o rio Eufrates.

“Foi horrível de ver” – Prince relembra. “Estive na Marinha, em guerra, e jamais perdi homem que estivesse sob meu comando. Na Blackwater, jamais tivemos mortes, nem por acidente em treinamento com arma de fogo. E então, de repente, quatro dos meus rapazes haviam sido mortos e, pior, os cadáveres foram violados.” Três meses depois, regras editadas pelas autoridades da coalizão em Bagdá declararam imunes à lei iraquiana as empresas privadas que operavam no Iraque.

Consequência das mortes em serviço, as famílias dos mortos processaram a Blackwater, alegando que a empresa não oferecera proteção adequada aos seus entes queridos. Como resposta, a Blackwater processou as famílias por quebra de contrato que proibia seus empregados e respectivos inventariantes de processar a empresa em caso de morte em ação; a empresa também alegou que, dado que operava como extensão do corpo militar, não poderia ser responsabilizada por mortes em zona de guerra. (Passados cinco anos, o processo ainda não foi concluído).

Em 2007, investigação pelo Congresso dos EUA sobre o mesmo incidente concluiu que os empregados haviam sido enviados para área dominada pelos guerrilheiros “sem preparação, sem recursos e sem apoio suficientes.” Para a Blackwater, o relatório do Congresso não passou de “versão de um só lado, sobre um trágico incidente”.

Depois de Fallujah, a Blackwater tornou-se ‘de casa’. Sua missão primária no Iraque havia sido proteger dignitários norte-americanos, o que a empresa fez ao mesmo tempo em que construía uma imagem de invencibilidade, com homens pesadamente armados, em trajes de combate, correndo em veículos blindados pelas ruas de Bagdá com sirenes ligadas. O show e a demonstração ostensiva de grande poder de fogo, que chamou atenção para a empresa e a separou, tanto dos cidadãos locais quanto dos militares norte-americanos, reforçaram as acusações de emprego de força excessiva.

À medida em que a guerra avançava, avançavam também as acusações contra a empresa. Num dos processos, um dos empregados matou a tiros um iraquiano pai de seis filhos que estava parado à margem da estrada em Hillah (Prince disse mais tarde ao Congresso que o empregado foi demitido por ter tentado encobrir o incidente). Em outro, um técnico especialista em armas de fogo da Blackwater foi acusado de ter-se embriagado numa festa na Zona Verde e assassinado um dos guarda-costas do vice-presidente do Iraque. O técnico foi demitido mas não foi processado e, adiante, obteve acordo com a família da vítima, embora ilegal, que encerrou o processo.

Mas tudo isso empalidece, comparado aos eventos de 16/9/2007, quando uma falange de empregados da Blackwater saltou de um comboio de quatro carros numa esquina de Bagdá chamada Praça Nisour e abriu fogo contra a multidão. Quando a fumaça dissipou-se, havia 17 iraquianos civis mortos. Depois de 15 meses de investigações, o Departamento de Justiça acusou seis por massacre premeditado e outros crimes, concluindo que o uso da força fora, além de injustificado, também não foi provocado.

Um dos acusados reconheceu-se culpado e espera-se que testemunhe contra os outros, no julgamento marcado para fevereiro; até agora, todos os demais se declararam inocentes. O New York Times noticiou recentemente que, imediatamente depois do tiroteio, os altos executivos da empresa autorizaram pagamentos secretos de 1 milhão de dólares a autoridades iraquianas, para comprar seu silêncio – acusação que, para Prince, é “falsa”, insistindo em que “[nunca houve] nem planos nem qualquer discussão sobre subornar autoridades.”

A Praça Nisour gerou repercussões catastróficas para a Blackwater. As funções que desempenhava no Iraque foram reduzidas, os ganhos caíram 40%. Hoje, diz Prince, desembolsa $2 milhões por mês em despesas com taxas e advogados para responder aos processos civis e está sendo submetido a auditoria que, para ele, “é um exame proctológico gigante” por quase uma dúzia de agências federais. “Antes, investíamos em Pesquisa & Desenvolvimento, para construir melhores capacidades para servir ao governo dos EUA” – diz Prince. “Hoje, pagamos advogados.”

Nisso, não mente. Na Carolina do Norte, um tribunal federal investiga diversas acusações, inclusive de transporte ilegal de armas de assalto e silenciadores para o Iraque, escondidos em sacos de ração para cachorro (Blackwater negou essas acusações, mas confirmou que ocultava armas em contêineres de ração para cachorro, para evitar que fossem roubadas “por agentes de alfândega corruptos em países estrangeiros”).

Na Virginia, dois ex-empregados assinaram declarações judiciais nas quais dizem que Prince e a empresa Blackwater podem ter assassinado ou mandado assassinar pessoas suspeitas de colaborar com as autoridades dos EUA que investigavam a empresa – acusação que a Blackwater considerou “escandalosa e sem qualquer base.” Um dos empregados disse também, ante autoridade judicial, que empregados da empresa mantinham um arranjo de troca de esposas, para finalidades sexuais, acusações que, para a Blackwater, seriam “anônimas, sem provas e caluniosas”.

Enquanto isso, em fevereiro último, Prince montou uma cara campanha de reposicionamento de sua marca. Em 1996, depois da falência fraudulenta da empresa ValuJet, desapareceu a marca ValuJet, absorvida em fusão com a AirTran, que começou feliz vida nova. Seguindo a mesma fórmula, Prince decidiu fazer sumir a marca Blackwater, substituindo-a por “Xe”, abreviatura de “xenônio”, gás inerte, não combustível que, seguindo nisso a inclinação política de Prince, localiza-se na extrema direita da tabela periódica de elementos. Prince e outros altos executivos da empresa, entre eles, continuaram a usar o nome Blackwater. E, como os fatos não demorariam a comprovar, a reputação da empresa continuaria combustível como sempre.

Espiões e Cochichos

Em junho passado, Leon Panetta, diretor da CIA, foi ouvido em sessão secreta da Comissão Conjunta de Inteligência da Câmara de Deputados e do Senado, para informar sobre um programa de ação secreta que a Agência manteve, sem conhecimento do Congresso. Panetta explicou que só na véspera soubera daquela operação e que a mandara cancelar imediatamente.

A razão da suspensão, aparece agora, explicada por Paul Gimigliano, porta-voz da CIA: “A operação foi suspensa porque não tirou das ruas nenhum terrorista.” Durante a sessão secreta, segundo dois participantes, Panetta citou Erik Prince e a Blackwater como participantes chave do programa. (Solicitado a confirmar essa avaliação, Gimigliano disse que “o diretor Panetta considera confidenciais declarações feitas ao Congresso, em reunião com portas fechadas.”) Imediatamente depois, diz Prince, começou a receber telefonemas com perguntas impertinentes, de pessoas que ele descreve como muito distantes do círculo daqueles nos quais se deve confiar.

Passaram-se três semanas, antes que começassem a aflorar os primeiros, embora ainda muito esquemáticos, detalhes. Em julho, o Wall Street Journal descreveu o programa como “esforço para executar uma autorização presidencial, de 2001, para capturar ou matar agentes da Al-Qaeda.” A CIA, declaradamente, planejava dar conta dessa tarefa despachando pequenas equipes para além-mar.

Deputados e senadores, que ainda não entendem perfeitamente o objetivo da missão, ficaram furiosos por terem sido postos à margem. (Ex-funcionários da CIA, como se sabe, veem as coisas de outro modo; para eles, o programa seria “mais aspiracional, que operacional”; e jamais gerou qualquer resultado que justificasse prestar informações ao Senado).

Dia 20/8, o tempo fechou. O New York Times publicou matéria cuja manchete dizia “CIA pediu socorro à Blackwater para matar jihadistas”. O Washington Post ajudou: “CIA contrata empresa para programa de assassinatos”. Prince confessa que se sentiu enganado. “Não entendo como um programa tão sensível pode ter vazado”, diz. “E para me porem à frente de tudo?” Dia seguinte, o Times foi ainda além, e revelou o papel da Blackwater no emprego de aviões-robôs para matar os cabeças da Al-Qaeda e de outros líderes Talibã: “Em bases clandestinas no Paquistão e no Afeganistão (…), empresas contratadas montam e carregam mísseis Hellfire e bombas gigantes guiadas a laser ou aviões-robôs Predator pilotados por controle remoto, trabalho que, antes, sempre foi executado por agentes da CIA.”

Erik Prince, quase do dia para a noite, passou por violento reposicionamento do destino, dessa vez não planejado por ele. De mercenário que lucra com a guerra, tornou-se mercador da morte, com licença para matar em terra e no ar. “Sou alvo fácil”, diz ele. “Minha família é republicana e, sim, a empresa é minha. Nossos concorrentes não têm cara nem nome.”

Prince culpa os democratas no Congresso pelo vazamento e insiste em que há aí dois pesos e duas medidas. “A esquerda reclamou tanto de a identidade da [agente da CIA] Valerie Plame ter sido exposta por razões políticas. Indicaram até um procurador especial [para investigar]. Ora essa! Comigo, fizeram muito pior! Por razões políticas, há gente aí que não apenas fez vazar informes sobre uma operação altamente sensível e secreta, como, além do mais, expôs o meu nome como associado àquela operação!” Exatamente como no caso Plame, contudo, os vazamentos levaram os advogados da CIA a também exigir que o Departamento de Justiça inicie investigação criminal para identificar os responsáveis pelo vazamento, que distribuíram para a imprensa informação classificada altamente secreta que envolvia a Blackwater.

Intensamente focados contra a griffe Blackwater, o Congresso e a mídia não viram o elefante na sala. Prince não era apenas empresa contratada, dizem os mais próximos da questão; era também agente pleno.

Três fontes com conhecimento direto do relacionamento, dizem que a Divisão de Recursos Nacionais da CIA recrutou Prince em 2004 para integrar uma rede secreta de cidadãos norte-americanos com habilidades especiais ou acesso não normal a alvos que interessavam à Agência. Em matéria de agente qualificado, Prince seria, mesmo, um tesouro raro. Tinha mais dinheiro, meios de transporte, equipamento e material humano à sua disposição que qualquer outro recruta potencial com que Agência jamais sonhou, em seus 62 anos de história.

A CIA não se pronuncia sobre essas questões, mas o próprio Prince está bastante mais loquaz. “Eu estava trabalhando para criar uma força restrita e focada”, diz ele, “exatamente como Donovan fez há anos” – referindo-se a William “Wild Bill” [Bill, o Selvagem] Donovan, agente que, na II Guerra Mundial, comandou o Escritório de Serviços Estratégicos, precursor da moderna CIA (o filho mais novo de Prince, Charles – o mesmo que caiu na piscina e foi salvo pelo irmão – recebeu nome em homenagem ao agente Bill, o Selvagem.

Duas fontes, que conhecem bem aquele arranjo, dizem que os agentes que recrutaram Prince tinham autorização, dada pelo alto comando da CIA, para recrutá-lo e em seguida abriram um “arquivo 201”, segundo o qual Prince apareceria, nos registros da Agência, como recruta vetado. Não se sabe com clareza quem mandava em quem, porque Prince diz que, diferente dos demais recrutados, trabalhava praticamente por conta própria, usando, segundo diz, dinheiro seu, para testar a viabilidade de algumas operações.

“Fui criado bem próximo da indústria de autopeças,” Prince explica. “Os clientes diziam ao meu pai: ‘Precisamos disso, assim, assim’. Meu pai tinha de investir seu próprio dinheiro para criar protótipos que atendessem cada demanda. A minha abordagem sempre foi a mesma: se você cria a peça, os clientes aparecem.”

Segundo duas fontes que conhecem seu trabalho, Prince desenvolvia nessa época meios não convencionais para entrar em países considerados “impenetráveis” – nos quais a CIA não conseguia trabalhar, fosse porque não tinha bases a partir das quais operar, ou porque os serviços locais de inteligência tinham meios para frustrar todas as iniciativas da Agência. “Não ganhei dinheiro algum com esse trabalho”, Prince contra-argumenta. Está pronto para especificar a exata natureza e origem do que ganha. “Estou sendo pintado pelo Congresso como mercenário que enriquece nessa guerra. Mas sou eu quem paga, do meu bolso, para manter várias atividades de inteligência necessárias para apoiar a segurança nacional dos EUA. Do meu bolso.” (E é bolso fundo: segundo o Wall Street Journal, a Blackwater obteve lucros de mais de $600 milhões, em 2008.)

No Afeganistão

A paisagem afegã, vista em panorâmica a 200 nós, é uma neblina marrom-alaranjada. A imagem é ainda menos definida, pelo fato de que Erik Prince voa sobre ela, à altura de 200 pés. A parte traseira do avião – um pequeno C-212 de fabricação espanhola – está aberta, e vê-se a silhueta de Prince contra o azul do céu. Veste botinas Oakleys, calças caqui de combate e uma camiseta branca; parece espantosamente jovem, adolescente.

A tripulação inicia uma contagem regressiva, Prince ajusta a cinta que o prende ao avião e toma posição. Ao ouvir o comando “agora!”, um jovem GI ao seu lado corta uma tira, e Prince empurra um contêiner para fora do avião. Vê-se o paraquedas preto que se abre e o avião salta para a frente, empurrado pela diferença de peso. A carga – alimentos e munição – cai dentro do perímetro demarcado de uma FOB [ing. Forward Operating Base], Base de Operação Avançada de um esquadrão de elite das Forças Especiais dos EUA.

Cinco vezes por semana, o braço de aviação da Blackwater – uma empresa que leva o espantoso nome de Presidential Airways – voa nessas perigosas baixas altitudes até os mais remotos postos norte-americanos no Afeganistão. Desde 2006, a empresa de Prince está encarregada de prestar esse “serviço chave” aos soldados norte-americanos, que implica milhares de viagens de entrega. A Blackwater também fornece serviços de segurança ao embaixador Karl Eikenberry, dos EUA, e sua equipe; e dá treinamento a unidades especiais da polícia antinarcóticos do Afeganistão.

De volta a terra firme, Prince, com um BlackBerry à cintura e uma 9 mm do outro lado, faz rápida visita de inspeção a uma das bases da Blackwater no nordeste do Afeganistão, mostrando alguns prédios recentemente atingidos por fogo de morteiros. Um avião-robô circula no céu, as câmeras vasculhando os arredores. Prince escala uma torre de observação e examina um ponto, abaixo, onde dois de seus empregados quase foram mortos em julho, por uma bomba de fabricação caseira. “Sem contar os postos de controle de passagem de civis, essa é a base mais próxima da fronteira [do Paquistão].” A voz ganha solenidade melodramática. “Quem mais construiu posto tão avançado de observação ao longo da principal via de infiltração para os Talibã, tão próximo da última localização conhecida de Osama bin Laden?” Não chega a ter o entusiasmo do “Para Aqaba!” de Lawrence da Arábia, mas o quadro é o mesmo.

Sair “dos holofotes”

A Blackwater está no Afeganistão desde 2002. Naquele momento, o diretor executivo da CIA A. B. “Buzzy” Krongard, respondendo às queixas de seus agentes, que estavam “muitíssimo preocupados porque os afegãos estão chegando à cerca ou abrindo as portas”, alistou a empresa para dar proteção à base da Agência em Cabul. “Baixar o perfil”, ou “sair dos holofotes” valeu a pena: enquanto a Blackwater trabalhou ali, nenhum agente da CIA morreu no Afeganistão, segundo fontes próximas da empresa. (Mas isso pode ser conversa de compadres. Krongard, depois, serviria como conselheiro não remunerado da direção da Blackwater, até 2007. E seu irmão Howard “Cookie” Krongard – inspetor geral do Departamento de Estado – teve muito trabalho para comprovar absoluta separação dos negócios com a Blackwater no Afeganistão, depois que se revelou o envolvimento do irmão com aquela empresa. Buzzy, depois, se demitiu).

À medida que crescia a confiança da CIA na Blackwater, aumentavam as responsabilidades da empresa, que passaram da proteção estática à segurança móvel – cobertura ao pessoal da Agência, sempre temerosos de suicidas-bombas, emboscadas e bombas de fabricação caseira semeadas ao longo e às margens das estradas, em suas andanças pelo país. Mas em 2005 a Blackwater, adaptada para fazer a guarda pessoal dos agentes da CIA, começava a parecer-se demais com a própria CIA.

Enrique “Ric” Prado tornou-se empregado da Blackwater depois de trabalhar como chefe de operações do Centro de Contraterrorismo (CTC) da CIA. Pouco depois, o chefe de Prado, J. Cofer Black, diretor geral do CTC também se mudou para a Blackwater. Foi seguido, depois, pelo superior dos dois, Rob Richer, segundo em comando de todas as operações clandestinas da CIA. Dos três, Cofer Black sempre foi o mais afamado.

Como Bob Woodward contou em seu livro Bush at War, dia 13/9/2001 Black prometeu ao presidente Bush que, quando a CIA tivesse “dado cabo” da Al-Qaeda, “eles estariam com ninhos de moscas nas córneas”. Segundo Woodward, “Black ficou conhecido, no círculo dos íntimos de Bush, como ‘o cara das moscas nas córneas’”. Richer e Black rapidamente ajudaram a criar nova empresa, a Total Intelligence Solutions (que coleta dados para avaliação de risco, vitais para empresas interessadas em investir além-mar). Mas em 2008 ambos deixaram a Blackwater. Em 2010, o presidente da Blackwater, Gary Jackson, seguiu o mesmo rumo.

Durante todo esse tempo, Black e Ric Prado, ex-parceiro de Richer, primeiro como funcionários da CIA, depois como empregados da Blackwater, trabalharam em silêncio com Prince como vice-presidentes de “programas especiais”, para prover a agência com um serviço de que todos os serviços de inteligência precisam muito: a possibilidade de negar tudo.

Pouco depois do 11/9, o presidente Bush lançou uma ordem de “localizar e matar” que deu à CIA salvo conduto para matar ou capturar membros da Al-Qaeda. (Por efeito de ordem presidencial do presidente Gerald Ford, desde 1976 os agentes da inteligência dos EUA eram proibidos, por lei, de organizar e executar assassinatos).

Experimentado funcionário e agente, Prado ajudou a viabilizar o cumprimento da autorização presidencial, reunindo seleta equipe de “faixas azuis” [ing. blue-badgers], como os agentes do governo são conhecidos. Faziam serviço de três etapas: encontrar, acertar e limpar. “Encontrar” um alvo determinado, “acertar” a rotina do alvo [no sentido de descobrir e fixar um roteiro] e “limpar” no sentido de, sendo necessário, matá-lo.

Quando chegou a hora de treinar essa equipe, a Agência, dizem fontes internas, procurou Prince. Preocupados em não atrair excessiva atenção, a equipe não foi treinada no centro da treinamento da empresa na Carolina do Norte, mas em uma propriedade particular de Prince, a uma hora de Washington, DC. A propriedade é semelhante a outras mansões dos grandes proprietários rurais, com pastagens e criação de cavalos, além de outras instalações menos ortodoxas, como um stand de treinamento de tiro, coberto. Mais uma vez, Prince inspirava-se no agente “Bill, o Selvagem”: “Os primeiros agentes do Office of Strategic Services (OSS) da II Guerra Mundial também foram treinados numa propriedade rural privada, no interior do país.”

Um dos alvos dessa equipe, segundo fonte que conhece bem o programa, foi Mamoun Darkazanli, financiador da Al-Qaeda que vivia em Hamburgo e estava há anos no radar da Agência por suas ligações com três dos seqüestradores de 11/9 e com elementos condenados pelos atentados a bomba, em 1998, contra embaixadas dos EUA na África Oriental.

A equipe da CIA supostamente trabalhou “no escuro”, no sentido de que a presença da equipe na Alemanha não foi informada nem aos próprios superiores – muito menos ao governo alemão. Darkazanli foi seguido durante semanas, obedecendo ao padrão de procedimento, até decidir-se onde e quando seria abatido. Outro alvo, diz a mesma fonte, foi A. Q. Khan, o cientista paquistanês que partilhou know-how nuclear com Irã, Líbia e Coréia do Norte. Supõe-se que a equipe da CIA o tenha localizado em Dubai. Nos dois casos, insiste a mesma fonte, as autoridades em Washington escolheram suspender a caçada e não autorizaram o assassinato. Mas a inclusão de Khan na lista de alvos selecionados, contudo, sugere que o projeto de assassinatos seria mais amplo do que se suspeitava. (Para Gimigliano, porta-voz da Agência, “A CIA não discutiu – ao contrário do que a mídia divulgou – o conteúdo e substância desses projetos, ou de projetos anteriores”).

A mesma fonte que conhece as missões Darkazanli e Khan não aceita o que têm dito agentes atuais e passados da CIA: “Eles têm dito que o programa [de assassinatos seletivos] não avançou porque [os agentes] não tinham capacitação ou porque houve falha de cobertura. Não é verdade. A operação esteve ativa por muito tempo, em vários lugares, sem jamais ser descoberta. O programa morreu por falta de vontade política.”

Quando Prado deixou a CIA, em 2004, ele de fato carregou o programa com ele, depois de um curto hiato. Àquela altura, segundo fontes que conhecem o plano, Prince já estava ligado à Agência e os dois começaram a trabalhar na privatização do programa, mudando a composição da equipe, de faixas azuis, para uma combinação de “faixas verdes” (empresas contratadas pela CIA) e empresas nacionais de países do Terceiro Mundo (que não sabiam da conexão com a CIA).

Funcionários da Blackwater insistem que os recursos da empresa e a força-de-trabalho jamais foram diretamente utilizadas; essas iniciativas seriam de responsabilidade pessoal direta de Prince; a empresa, depois, reembolsava os gastos que houvesse. E que, apesar dos laços íntimos que os ligavam à CIA, nem Cofer Black nem Rob Richer participaram. Nas palavras de Prince: “Estávamos construindo capacidade unilateral e intransferível. Se desse errado, não esperávamos que o chefe de polícia, o embaixador ou fosse quem fosse nos tirasse da cadeia.” Prince insiste que, se essa equipe tivesse realmente funcionado, a Agência teria ganho pleno controle. Mas não funcionou, devido ao que Prince chama de “osteoporose institucional”; e a parte conclusiva do programa de assassinatos seletivos não decolou.

Em algum momento depois de 2006, a CIA tentaria reativar o programa, segundo fonte interna, que conhece o plano em detalhes. “Cada um achou alguma razão para não participar”, diz a fonte. ‘Afinaram’. As pessoas diziam aos coordenadores ‘Tenho família, tenho outros compromissos’. Assim é a fucking CIA. Deveriam liderar a luta contra a al-Qaeda, mas não tinham quem fizesse.”

Outras fontes, que também conhecem o programa, são mais generosas; para elas, “por que um funcionário de pensamento direitista assinaria um programa de assassinatos, quando via seus colegas – que pensaram que receberiam cobertura legal para outro esforço sensível, como o programa secreto de “interrogatórios reforçados” em bases secretas da CIA em países estrangeiros – enrolados em problemas com a justiça?”

Os EUA e Erik Prince, ao que parece, demoraram demais para separarem-se do negócio de assassinatos. Sob os aviões-robôs que voam com auxílio da Blackwater por cima da fronteira Afeganistão-Paquistão (o presidente Obama autorizou mais de três dúzias desses ataques), Prince diz que ele e uma equipe de cidadãos estrangeiros ajudaram a encontrar e acertar um alvo em outubro de 2008, e depois deixaram a etapa de “limpar” para outros.

“Na Síria”, diz Prince, “demos todos os sinais de inteligência para a geolocalização dos bandidos em área em que ninguém entrava.” Subsequentemente, uma equipe das Forças Especiais dos EUA lançou ataque de helicóptero para matar um agente intermediário da Al-Qaeda, Abu Ghadiyah. Ghadiyah, cujo nome real é Badran Turki Hishan Al-Mazidih, foi dado por morto, com seis outros – embora haja dúvidas sobre a presença de Ghadiyah no dia do ataque, como se leu em reportagem recente assinada por Reese Ehrlich e Peter Coyote, em Vanity Fair.

E até há dois meses – quando, diz Prince, o governo Obama tirou o fio da tomada –, Prince continuava profundamente envolvido em artes ocultas. Segundo fontes internas, continuava a trabalhar em operações para reunir informações de inteligência, de um local secreto, nos EUA, coordenando remotamente o movimento de espiões que trabalham infiltrados num dos países do chamado “Eixo do Mal”. Missão deles: informação classificada.

Estratégia de retirada

Voando de volta a Cabul, Prince volta ao tópico de o quanto se sente exposto desde que a mídia revelou seu papel no programa de assassinatos. A tempestade que começou em agosto continuou a crescer e pode estar levando muitos a já não saber com certeza se o próprio Prince não seria hoje mais risco que patrimônio. Ele diz que não entende porque se cancelariam alguns esforços e programas de alto risco e alto ganho contra alguns dos mais implacáveis inimigos dos EUA, por medo de que se envolver implique riscos inadmissíveis, dado o clima político.

Parece não acreditar que funcionários do governo dos EUA dêem sinais claros de que cortarão a mangueira de ar daqueles programas. “Trabalho, às claras e clandestinamente, sempre servindo aos EUA, desde que me alistei pela primeira vez nas Forças Armadas”, Prince observa. Depois de 12 anos de trabalho para construir sua empresa, diz que quer entregá-la aos empregados e a um comitê de administração, e deixar, de vez, de prestar serviços à Defesa. Há quem diga que está em curso uma luta interna pelo poder, entre os que querem redefinir o rumo do que possa ser uma Blackwater pós-Prince. Prince repete, simplesmente, “Estou farto.”

No passado, Prince alimentou a ideia de construir um navio – completo, com pessoal de segurança, médicos, helicópteros, remédios, alimentos e combustível – e estacioná-lo no litoral da África, para oferecer “ajuda e dentes” nos pontos mais difíceis do continente ou enfrentar os piratas da Somália. Chegou a pensar em criar uma brigada de rápido deslocamento, a ser alugada, sob pagamento, a governos estrangeiros.

Por hora, contudo, Prince diz que tem planos muito mais modestos. “Vou ser professor de ginásio”, diz, sem piscar. “Posso ensinar história e economia. E sou treinador de luta livre. Por que não? Indiana Jones também foi professor.”

Nota de Traducão

[1] A Avenida Madison, em NY, é, tradicionalmente, endereço das primeiras e principais agências de publicidade do mundo.

O artigo original, em inglês, pode ser lido aqui: Tycoon, Contractor, Soldier, Spy