Vanity Fair: No mundo da Blackwater
Erik Prince, o homem da Blackwater
Empresário, soldado, espião
Adam Ciralsky, Vanity Fair, jan. 2010 – traduzido por Caia Fittipaldi
Erik Prince, recentemente indiciado como membro ativo de um programa de ‘assassinatos seletivos’ da CIA, ganhou notoriedade como presidente da empresa-gigante de segurança privada Blackwater, empresa que é hoje objeto de investigação federal acusada de suborno, julgamento privado e tortura de cinco ex-empregados, com julgamento marcado para o mês de julho. Em movimento que visa a responder aos que o criticam, o milionário ex-fuzileiro de grupo de elite da marinha dos EUA convida o jornalista para acompanhá-lo até o coração de sua empresa, nos EUA e no Afeganistão, para mostrar o papel que tem na guerra dos EUA contra o terror.
“Minha empresa e eu nos colocamos a serviço da CIA, em algumas missões muito perigosas” – diz Erik Prince, enquanto corre os olhos pela fortaleza onde vive, cercado por 7 mil acres, numa propriedade na área rural de Moyock, Carolina do Norte. “Mas quando parece politicamente conveniente a uns ou outros, sou sempre o primeiro que empurram para debaixo do ônibus”. Prince, fundador da Blackwater, a mais conhecida empresa mundial de prestação de serviços militares privados está soltando fogo pelas ventas milionárias. Quer desabafar. E quer que todos ouçam o desabafo.
Erik Prince enfrenta hoje um problema de imagem – desses que não há publicidade comprada na Avenida Madison [1] que resolva. Aos 40 anos, herdeiro de fortuna construída em Michigan com rede de lojas de revenda de peças para automóveis e ex-fuzileiro do corpo de elite da Marinha dos EUA, conseguiu a façanha de ser crucificado no plano real e, também, no plano simbólico.
Em Washington, Prince tornou-se bode expiatório para todos os erros e tragédias do governo Bush no Iraque – embora alguns dos feitos da Blackwater tenham sido citados para neutralizar as críticas.
Deputados, senadores, advogados, grupos de direitos humanos e noticiários descreveram Prince como aproveitador, beneficiário da guerra, que reuniu uma quadrilha de bandidos e milicianos capaz de derrubar governos. Seus empregados têm sido repetidamente acusados de uso excessivo, eventualmente mortal, de força, no Iraque. De fato, vários iraquianos morreram em confrontos com o ‘exército’ da Blackwater. E em novembro, ao mesmo tempo em que um Grande Júri na Carolina do Norte analisava longa lista de acusações contra a empresa, meia dúzia de processos civis fermentavam no estado da Virginia; e, enquanto cinco ex-gerentes da Blackwater preparavam-se para enfrentar julgamento, acusados da morte de 17 iraquianos, o New York Times publicou, em matéria de primeira página, que a empresa de Prince, no dia seguinte à tragédia, tentara subornar funcionários do governo do Iraque para que mudassem seus depoimentos.
São acusações que, para Prince, não passam de “mentiras (…) sem provas, sem substância, sem documentos [e] anônimas” (A marca Blackwater está de tal forma associada a crimes em geral, qualquer tipo de crime, que até os Talibã fizeram circular teorias conspiratórias, segundo as quais a empresa de Prince estaria operando infiltrada também em ações com suicidas-bomba no Paquistão).
Simultaneamente, em Hollywood, cidade que ama acima de tudo no mundo um vilão boa-pinta, Prince, louro, com físico e ares de Daniel Craig, tornou-se obsessão de batalhões de roteiristas. No filme State of Play, uma empresa-clone da Blackwater (PointCorp.) usa sua rede de mercenários para vigilância ilegal e assassinatos de encomenda. Na série 24 horas, Jon Voight encarnou Jonas Hodges, versão apenas muito superficialmente diferente de Prince, cuja empresa (Starkwood) ajuda um senhor-da-guerra africano a contrabandear gás venenoso a ser empregado contra alvos norte-americanos.
Mas a verdade sobre Prince talvez alcance magnitudes mais estranhas que qualquer ficção. Nos últimos seis anos, parece ter vivido vida aterrorizantemente dupla. Publicamente, trabalhou como presidente e diretor da Blackwater.
Nos planos privado e secreto, opera como superagente da CIA, ajudando a planejar, financiar e executar operações que vão desde infiltrar seus funcionários em áreas de “acesso negado” – locais nos quais a inteligência oficial dos EUA não consegue entrar –, até reunir equipes cujos alvos são membros da al-Qaeda e seus aliados.
Prince, segundo fontes que conhecem suas atividades, trabalha como ativo da CIA: numa palavra, como espião. Enquanto sua empresa se ocupa em fazer jus aos mais de 1,5 bilhão de dólares em contratos assinados com o governo entre 2001 e 2009 – atuando, dentre outras funções, como uma espécie de guarda pretoriana da segurança do pessoal da CIA e do Departamento de Estado além-mar – Prince tornou-se uma espécie de “Faz-Tudo” na guerra ao terror. Seu acesso a forças paramilitares, armas e aviões, e uma infatigável ambição – atributos contra os quais se mobilizam seus críticos –, tornam Prince extremamente valioso para a inteligência dos EUA. (…)
Mas Prince, com novo governo no poder e os inimigos fechando o cerco, parece estar finalmente saindo do frio. No outono passado, por mais que raramente conceda entrevistas, Prince decidiu que era chegada a hora de contar sua versão da história – para responder à chuva de acusações, para revelar exatamente o que fizera à sombra do governo dos EUA e para apresentar seus argumentos. Também espera poder dizer porque, agora, está afastando-se de todo aquele passado.
Com isso em mente, convidou Vanity Fair para visitar seu campo de treinamento na Carolina do Norte, os escritórios em Virginia e os postos avançados no Afeganistão. Parece boa ocasião para saber o que planeja e oportunidade que não se desperdiça.
Personalidade Dividida
Erik Prince pode ser homem difícil de avaliar – como amálgama de caricaturas contraditórias. Foi dito “cristão suprematista”, favorável ao assassinato de civis iraquianos, mas financiou a construção de mesquitas no Oriente Médio e mantém um orfanato muçulmano no Afeganistão. Ele e sua família há muito tempo apóiam causas dos conservadores, financiam candidatos de direita e relacionam-se com evangélicos, mas o próprio Prince diz-se libertário e é católico romano praticante. Muitas vezes dito arrogante e recluso – um Howard Hughes, sem o TOC [Transtorno Obsessivo-Compulsivo] – participa de competições em que se combinam montanhismo-de-bicicleta, corrida, caiaquismo oceânico e rapel.
O denominador comum, aí, é a intensidade incansável, como se jamais desligasse. Sentado no fundo de um Boeing 777 a caminho do Afeganistão, passa os olhos num exemplar de Defense News, enquanto o filme Busca Implacável (2008, Taken) brilha no sistema de televisão de bordo. No filme, Liam Neeson faz o papel de um agente aposentado da CIA, que organiza ação agressiva de resgate, quando a filha é sequestrada em Paris. O personagem de Neeson alerta os sequestradores de sua filha: “Se estão querendo resgate, aviso que não tenho dinheiro. O que tenho é um conjunto de habilidades (…), do tipo que fazem de mim o pesadelo de gente como vocês. Devolvam minha filha. Se não devolverem, eu procuro vocês, acho vocês e mato todos.”
Prince comenta: “Usei esse filme para ensinar minhas filhas.” (Pai de sete, Prince casou-se novamente depois de a primeira esposa morrer de câncer, em 2003.) “Queria que elas entendessem os perigos que há à nossa volta. E queria que soubessem como eu responderia.”
Impossível evitar a impressão de que Prince vê-se como predestinado. Aparece até nas histórias mais pessoais. Durante o vôo, conta que estava em Cabul em setembro de 2008, e recebeu telefonema, às 2h da manhã, da esposa, Joanna. Charlie, filho de Prince, então com um ano, caíra na piscina. O irmão, Christian, então com 12 anos, tirou-o da água, roxo e sem respirar; aplicou-lhe técnicas de ressuscitação e salvou o irmão. Christian e três irmãos haviam feito o curso de primeiros socorros, certificado pela Cruz Vermelha, no campo de treinamento da Blackwater.
Mas a história continua, porque havia poderes superiores em ação, naquela noite. Ansioso para chegar logo à casa, Prince descartou o itinerário regular, que implicava passar uma noite no hotel Marriott em Islamabad, e encontrou um vôo direto. Naquela noite em que Prince dormiria no hotel, o local foi alvo de ataque terrorista à bomba, que matou mais de 50 pessoas. Prince diz, como se fosse simples: “Christian salvou a vida de Charlie e Charlie salvou a minha.” Às vezes, a convicção de que a história reserva-lhe lugar especial é quase evangélica. Pressionado a falar sobre os que o acusam de ser mercenário – palavra que detesta –, desfia uma lista de militares não regularmente alistados, dentre os quais, Lafayette, aliado dos colonos durante a Guerra da Independência.
O estado padrão, em Prince, é a prontidão. Vive de dentes cerrados e músculos tensos. Não relaxa e não descansa. À espera na fila de revista no aeroporto Dulles, algumas horas antes, Prince recita uma homilia: “Cada vez que um norte-americano passa pela segurança, gostaria que parasse e pensasse ‘O que o governo dos EUA faz que tanto perturba os terroristas?’ Equipes de desarme, drones Predator, esquadrões da morte. Tudo é a mesma luta.”
Não é só empáfia. E o próprio Prince é familiarizado com vários desses recursos. Como outros mercenários, conhece as dificuldades de comandar uma empresa que para muitos não passa de ‘agência de aliciamento de bandidos e empregos temporários’. Muitos de seus contratados deixaram postos militares ou nos serviços de inteligência, atraídos pelos salários muitas vezes superiores para trabalho semelhante. ‘Trabalho’, aí, é proteger vidas, defender vidas e, sendo preciso, matar. Para encontrar os quadros de que precisa, Prince teve de reunir inúmeros veteranos condecorados, tanto quanto tipos mais sinistros, quadrilheiros, assaltantes e espiões, dentre outros.
Erik Prince voa sempre em aviões de carreira. Não só por ser mais barato (“Por que eu teria de pagar para trabalhar? Vôo normalmente, e chega-se à mesma hora”) mas, também, porque atrai menos atenção. Considera-se homem marcado. Classifica os diplomatas e dignitários que a Blackwater protege como “padrão Al-Jazeera de valor”, o que significa, segundo ele, que “bin Laden e seus bandidos adorariam matá-los em ação espetacular e mostrar pela televisão, em todo o mundo.”
Saindo do avião no aeroporto internacional em Cabul, Prince recebe tratamento, ele também, pelo “padrão Al-Jazeera de valor”. É imediatamente metido num carro que o esperava e que o leva até um segundo carro, algumas centenas de metros adiante, uma minivan surrada, absolutamente local, com bichinhos e cartões com orações pendurados ao espelho retrovisor. A equipe de projetos especiais da Blackwater no Afeganistão é responsável pela segurança de Prince quando está no país. Exceto pelo idioma, os homens são absolutamente idênticos a todos os afegãos que se veem pela rua. Têm longas barbas e turbantes e usam a roupa tradicional, de camisa até a canela, sobre calças bufantes. Removem os óculos escuros de Prince, vestem-lhe colete à prova de balas e dão-lhe trajes afegãos para que se troque. Entregam-lhe também um aparelho de rastreamento que envia sinais sobre sua localização e um telefone celular programado para chamar o centro de operações táticas da Blackwater.
Já na van, a equipe faz-lhe um briefing de segurança. Com fotos de satélite da área, revisam toda a rota até a sede da Blackwater e mostram a ele onde há armas e munição dentro da van. Os homens o previnem de que, caso sejam incapacitados ou mortos em emboscada no caminho, Prince deve assumir o controle das armas e apertar o botão vermelho junto ao freio de emergência: assim enviará um sinal eletrônico silencioso de alarme, pedindo reforços.
Falcões Negros e Zepelins
A Blackwater tem origem humilde, quase simplória. A empresa tomou forma nas turfeiras de Moyock, Carolina do Norte – nada que se assemelhe a ninho de empresas que interessem à Defesa como prestadoras de serviços secretos.
O pai de Prince morreu em 1995, de ataque cardíaco (o pastor evangélico James C. Dobson, fundador da igreja conservadora “Focus on the Family”, fez a oração para encomendar o corpo). Edgar Prince deixou de herança importante negócio de fabricação de peças para automóveis em Holland, Michigan, com 4.500 empregados e ampla linha de produtos, de visor antirreflexo a abridor programável de portas de garagens. Erik, 25 anos, servia como fuzileiro em corpo especial da Marinha (serviu no Haiti, no Oriente Médio e na Bósnia), e nem ele nem as irmãs tinham condições de assumir a empresa. Venderam a Prince Automotive por US$1,35 bilhão.
Já há algum tempo Erik Prince e amigos fuzileiros, de fato, conversavam sobre a ideia de criarem uma empresa de treinamento integral de fuzileiros, que substituísse a colcha de retalhos de instituições de treinamento existentes. Em 1996, Prince foi dispensado com honras do seu corpo de fuzileiros e começou a comprar terras na Carolina do Norte. “A ideia não era só vender serviços para a Defesa, em si”, diz Prince, completando a imagem do que pareceria uma espécie de Disneyland para machos-alfa. “Eu pensava num campo de treinamento obrigatório para militares e, sobretudo, para a comunidade de operações especiais.”
O negócio andou devagar. Os fuzileiros da Marinha logo apareceram – em janeiro de 1998 – mas eram poucos e, quando o Centro Blackwater de Alojamento e Treinamento foi oficialmente inaugurado, em maio daquele ano, amigos e conselheiros de Prince acreditavam que ele estivesse enterrando bom dinheiro em terreno ruim. “Muita gente dizia ‘Não passa de acampamento para meninos ricos’”, diz Prince. “Não entenderam o que eu estava fazendo.”
Hoje, o local é centro de uma rede de instalações onde são treinadas cerca de 30 mil pessoas por ano. Prince, proprietário de um avião-robô de dimensões zepelinescas e que gastou 45 milhões para construir uma frota de veículos de transporte blindados e à prova de bomba para conduzir seu pessoal, viaja seguidamente para o campo pilotando ele mesmo seu Cessna Caravan, que decola de sua casa na Virginia. O campo de treinamento tem pista privada de pouso.
Os hangares abrigam um verdadeiro zoológico de aviões de guerra: helicópteros Bell 412 (usados para seguir ou conduzir diplomatas no Iraque), helicópteros Black Hawk (atualmente passando por processo de adaptação para atender às exigências de segurança de um cliente de um dos estados do Golfo), um avião Dash 8 (que transporta soldados e veículos no Afeganistão). No campo de treinamento, com mais de 52 cenários, há vilas virtuais desenhadas para mostrar todos os tipos imagináveis de ameaça real: pequenas praças cobertas de carros explodidos, situadas junto a cruzamentos de rodovias e portos.
Num desses cruzamentos, equipes vestidas como a SWAT atiram com metralhadoras, rifles e pistolas; noutro, oficiais de polícia deslocam-se ao longo da mais longa estrada artificial do mundo, ao longo da qual e em cujos acostamentos explodem, para efeito de treinamento, todos os tipos de minas terrestres e bombas.
Em consonância com o nome original da empresa, o prédio central, de pedra, vidro, concreto e toras de madeira, parece de fato o centro de um acampamento, ou um supermercado de aluguel de material para camping com atenção especial ao setor de esteróides. Aqui e ali há detalhes especialmente projetados, como maçanetas em forma de cano de espingarda. Nas mesas do salão de entrada, onde, noutras empresas, encontrar-se-iam exemplares de Us Weekly, a Blackwater oferece revistas especializadas em contraguerrilha, com matérias de capa do tipo “Como Destruir a Al-Qaeda.”
A verdade é que sem Al-Qaeda não existiria Blackwater. A Al-Qaeda pôs a Blackwater no mapa. Nos dias imediatamente seguintes ao ataque ao navio USS Cole, dos EUA, em outubro de 2000, no Iêmen, a Marinha procurou Prince, dentre outras empresas, em busca de retreinamento para seus marinheiros, para o caso de ataques corpo a corpo, ou de curta distância. (Até hoje, diz a empresa, cerca de 125 mil membros do corpo da Marinha já passaram por seus programas). Além de engordar o caixa, o contrato com a Marinha ajudou a Blackwater a construir um banco de dados de militares aposentados – muitos dos quais veteranos das forças especiais – que poderiam ser recrutados como instrutores.
Quando a al-Qaeda atacou no território dos EUA dia 11/9, diz Prince, sentiu que tinha obrigação ou de realistar-se ou de oferecer-se para trabalhar para a CIA. Diz que se apresentou. “Fui rejeitado”, admite, com uma careta ante a ironia de se ter apresentado como recruta à agência que, mais tarde, dependeria dele. “Disseram que minhas qualificações ‘duras’ em campo não eram suficientes”. Indomável, decidiu orientar o cursor de ofertas de emprego na direção de uma convocação para o que, em seguida, seria convertido, essencialmente, em exército privado.
Depois dos ataques terroristas em Nova York, a empresa de Prince passou a trabalhar para o Departamento de Defesa, oficialmente, não clandestinamente, embora sempre em relativa obscuridade, em ações no Afeganistão e, depois da invasão pelos EUA, também no Iraque. Então aconteceu o 31/3/2004. Nesse dia, os guerrilheiros emboscaram quatro de seus empregados na cidade iraquiana de Fallujah. Os homens foram mortos a tiros, os corpos incendiados. Os cadáveres destroçados de dois deles foram pendurados em uma ponte sobre o rio Eufrates.
“Foi horrível de ver” – Prince relembra. “Estive na Marinha, em guerra, e jamais perdi homem que estivesse sob meu comando. Na Blackwater, jamais tivemos mortes, nem por acidente em treinamento com arma de fogo. E então, de repente, quatro dos meus rapazes haviam sido mortos e, pior, os cadáveres foram violados.” Três meses depois, regras editadas pelas autoridades da coalizão em Bagdá declararam imunes à lei iraquiana as empresas privadas que operavam no Iraque.
Consequência das mortes em serviço, as famílias dos mortos processaram a Blackwater, alegando que a empresa não oferecera proteção adequada aos seus entes queridos. Como resposta, a Blackwater processou as famílias por quebra de contrato que proibia seus empregados e respectivos inventariantes de processar a empresa em caso de morte em ação; a empresa também alegou que, dado que operava como extensão do corpo militar, não poderia ser responsabilizada por mortes em zona de guerra. (Passados cinco anos, o processo ainda não foi concluído).
Em 2007, investigação pelo Congresso dos EUA sobre o mesmo incidente concluiu que os empregados haviam sido enviados para área dominada pelos guerrilheiros “sem preparação, sem recursos e sem apoio suficientes.” Para a Blackwater, o relatório do Congresso não passou de “versão de um só lado, sobre um trágico incidente”.
Depois de Fallujah, a Blackwater tornou-se ‘de casa’. Sua missão primária no Iraque havia sido proteger dignitários norte-americanos, o que a empresa fez ao mesmo tempo em que construía uma imagem de invencibilidade, com homens pesadamente armados, em trajes de combate, correndo em veículos blindados pelas ruas de Bagdá com sirenes ligadas. O show e a demonstração ostensiva de grande poder de fogo, que chamou atenção para a empresa e a separou, tanto dos cidadãos locais quanto dos militares norte-americanos, reforçaram as acusações de emprego de força excessiva.
À medida em que a guerra avançava, avançavam também as acusações contra a empresa. Num dos processos, um dos empregados matou a tiros um iraquiano pai de seis filhos que estava parado à margem da estrada em Hillah (Prince disse mais tarde ao Congresso que o empregado foi demitido por ter tentado encobrir o incidente). Em outro, um técnico especialista em armas de fogo da Blackwater foi acusado de ter-se embriagado numa festa na Zona Verde e assassinado um dos guarda-costas do vice-presidente do Iraque. O técnico foi demitido mas não foi processado e, adiante, obteve acordo com a família da vítima, embora ilegal, que encerrou o processo.
Mas tudo isso empalidece, comparado aos eventos de 16/9/2007, quando uma falange de empregados da Blackwater saltou de um comboio de quatro carros numa esquina de Bagdá chamada Praça Nisour e abriu fogo contra a multidão. Quando a fumaça dissipou-se, havia 17 iraquianos civis mortos. Depois de 15 meses de investigações, o Departamento de Justiça acusou seis por massacre premeditado e outros crimes, concluindo que o uso da força fora, além de injustificado, também não foi provocado.
Um dos acusados reconheceu-se culpado e espera-se que testemunhe contra os outros, no julgamento marcado para fevereiro; até agora, todos os demais se declararam inocentes. O New York Times noticiou recentemente que, imediatamente depois do tiroteio, os altos executivos da empresa autorizaram pagamentos secretos de 1 milhão de dólares a autoridades iraquianas, para comprar seu silêncio – acusação que, para Prince, é “falsa”, insistindo em que “[nunca houve] nem planos nem qualquer discussão sobre subornar autoridades.”
A Praça Nisour gerou repercussões catastróficas para a Blackwater. As funções que desempenhava no Iraque foram reduzidas, os ganhos caíram 40%. Hoje, diz Prince, desembolsa $2 milhões por mês em despesas com taxas e advogados para responder aos processos civis e está sendo submetido a auditoria que, para ele, “é um exame proctológico gigante” por quase uma dúzia de agências federais. “Antes, investíamos em Pesquisa & Desenvolvimento, para construir melhores capacidades para servir ao governo dos EUA” – diz Prince. “Hoje, pagamos advogados.”
Nisso, não mente. Na Carolina do Norte, um tribunal federal investiga diversas acusações, inclusive de transporte ilegal de armas de assalto e silenciadores para o Iraque, escondidos em sacos de ração para cachorro (Blackwater negou essas acusações, mas confirmou que ocultava armas em contêineres de ração para cachorro, para evitar que fossem roubadas “por agentes de alfândega corruptos em países estrangeiros”).
Na Virginia, dois ex-empregados assinaram declarações judiciais nas quais dizem que Prince e a empresa Blackwater podem ter assassinado ou mandado assassinar pessoas suspeitas de colaborar com as autoridades dos EUA que investigavam a empresa – acusação que a Blackwater considerou “escandalosa e sem qualquer base.” Um dos empregados disse também, ante autoridade judicial, que empregados da empresa mantinham um arranjo de troca de esposas, para finalidades sexuais, acusações que, para a Blackwater, seriam “anônimas, sem provas e caluniosas”.
Enquanto isso, em fevereiro último, Prince montou uma cara campanha de reposicionamento de sua marca. Em 1996, depois da falência fraudulenta da empresa ValuJet, desapareceu a marca ValuJet, absorvida em fusão com a AirTran, que começou feliz vida nova. Seguindo a mesma fórmula, Prince decidiu fazer sumir a marca Blackwater, substituindo-a por “Xe”, abreviatura de “xenônio”, gás inerte, não combustível que, seguindo nisso a inclinação política de Prince, localiza-se na extrema direita da tabela periódica de elementos. Prince e outros altos executivos da empresa, entre eles, continuaram a usar o nome Blackwater. E, como os fatos não demorariam a comprovar, a reputação da empresa continuaria combustível como sempre.
Espiões e Cochichos
Em junho passado, Leon Panetta, diretor da CIA, foi ouvido em sessão secreta da Comissão Conjunta de Inteligência da Câmara de Deputados e do Senado, para informar sobre um programa de ação secreta que a Agência manteve, sem conhecimento do Congresso. Panetta explicou que só na véspera soubera daquela operação e que a mandara cancelar imediatamente.
A razão da suspensão, aparece agora, explicada por Paul Gimigliano, porta-voz da CIA: “A operação foi suspensa porque não tirou das ruas nenhum terrorista.” Durante a sessão secreta, segundo dois participantes, Panetta citou Erik Prince e a Blackwater como participantes chave do programa. (Solicitado a confirmar essa avaliação, Gimigliano disse que “o diretor Panetta considera confidenciais declarações feitas ao Congresso, em reunião com portas fechadas.”) Imediatamente depois, diz Prince, começou a receber telefonemas com perguntas impertinentes, de pessoas que ele descreve como muito distantes do círculo daqueles nos quais se deve confiar.
Passaram-se três semanas, antes que começassem a aflorar os primeiros, embora ainda muito esquemáticos, detalhes. Em julho, o Wall Street Journal descreveu o programa como “esforço para executar uma autorização presidencial, de 2001, para capturar ou matar agentes da Al-Qaeda.” A CIA, declaradamente, planejava dar conta dessa tarefa despachando pequenas equipes para além-mar.
Deputados e senadores, que ainda não entendem perfeitamente o objetivo da missão, ficaram furiosos por terem sido postos à margem. (Ex-funcionários da CIA, como se sabe, veem as coisas de outro modo; para eles, o programa seria “mais aspiracional, que operacional”; e jamais gerou qualquer resultado que justificasse prestar informações ao Senado).
Dia 20/8, o tempo fechou. O New York Times publicou matéria cuja manchete dizia “CIA pediu socorro à Blackwater para matar jihadistas”. O Washington Post ajudou: “CIA contrata empresa para programa de assassinatos”. Prince confessa que se sentiu enganado. “Não entendo como um programa tão sensível pode ter vazado”, diz. “E para me porem à frente de tudo?” Dia seguinte, o Times foi ainda além, e revelou o papel da Blackwater no emprego de aviões-robôs para matar os cabeças da Al-Qaeda e de outros líderes Talibã: “Em bases clandestinas no Paquistão e no Afeganistão (…), empresas contratadas montam e carregam mísseis Hellfire e bombas gigantes guiadas a laser ou aviões-robôs Predator pilotados por controle remoto, trabalho que, antes, sempre foi executado por agentes da CIA.”
Erik Prince, quase do dia para a noite, passou por violento reposicionamento do destino, dessa vez não planejado por ele. De mercenário que lucra com a guerra, tornou-se mercador da morte, com licença para matar em terra e no ar. “Sou alvo fácil”, diz ele. “Minha família é republicana e, sim, a empresa é minha. Nossos concorrentes não têm cara nem nome.”
Prince culpa os democratas no Congresso pelo vazamento e insiste em que há aí dois pesos e duas medidas. “A esquerda reclamou tanto de a identidade da [agente da CIA] Valerie Plame ter sido exposta por razões políticas. Indicaram até um procurador especial [para investigar]. Ora essa! Comigo, fizeram muito pior! Por razões políticas, há gente aí que não apenas fez vazar informes sobre uma operação altamente sensível e secreta, como, além do mais, expôs o meu nome como associado àquela operação!” Exatamente como no caso Plame, contudo, os vazamentos levaram os advogados da CIA a também exigir que o Departamento de Justiça inicie investigação criminal para identificar os responsáveis pelo vazamento, que distribuíram para a imprensa informação classificada altamente secreta que envolvia a Blackwater.
Intensamente focados contra a griffe Blackwater, o Congresso e a mídia não viram o elefante na sala. Prince não era apenas empresa contratada, dizem os mais próximos da questão; era também agente pleno.
Três fontes com conhecimento direto do relacionamento, dizem que a Divisão de Recursos Nacionais da CIA recrutou Prince em 2004 para integrar uma rede secreta de cidadãos norte-americanos com habilidades especiais ou acesso não normal a alvos que interessavam à Agência. Em matéria de agente qualificado, Prince seria, mesmo, um tesouro raro. Tinha mais dinheiro, meios de transporte, equipamento e material humano à sua disposição que qualquer outro recruta potencial com que Agência jamais sonhou, em seus 62 anos de história.
A CIA não se pronuncia sobre essas questões, mas o próprio Prince está bastante mais loquaz. “Eu estava trabalhando para criar uma força restrita e focada”, diz ele, “exatamente como Donovan fez há anos” – referindo-se a William “Wild Bill” [Bill, o Selvagem] Donovan, agente que, na II Guerra Mundial, comandou o Escritório de Serviços Estratégicos, precursor da moderna CIA (o filho mais novo de Prince, Charles – o mesmo que caiu na piscina e foi salvo pelo irmão – recebeu nome em homenagem ao agente Bill, o Selvagem.
Duas fontes, que conhecem bem aquele arranjo, dizem que os agentes que recrutaram Prince tinham autorização, dada pelo alto comando da CIA, para recrutá-lo e em seguida abriram um “arquivo 201”, segundo o qual Prince apareceria, nos registros da Agência, como recruta vetado. Não se sabe com clareza quem mandava em quem, porque Prince diz que, diferente dos demais recrutados, trabalhava praticamente por conta própria, usando, segundo diz, dinheiro seu, para testar a viabilidade de algumas operações.
“Fui criado bem próximo da indústria de autopeças,” Prince explica. “Os clientes diziam ao meu pai: ‘Precisamos disso, assim, assim’. Meu pai tinha de investir seu próprio dinheiro para criar protótipos que atendessem cada demanda. A minha abordagem sempre foi a mesma: se você cria a peça, os clientes aparecem.”
Segundo duas fontes que conhecem seu trabalho, Prince desenvolvia nessa época meios não convencionais para entrar em países considerados “impenetráveis” – nos quais a CIA não conseguia trabalhar, fosse porque não tinha bases a partir das quais operar, ou porque os serviços locais de inteligência tinham meios para frustrar todas as iniciativas da Agência. “Não ganhei dinheiro algum com esse trabalho”, Prince contra-argumenta. Está pronto para especificar a exata natureza e origem do que ganha. “Estou sendo pintado pelo Congresso como mercenário que enriquece nessa guerra. Mas sou eu quem paga, do meu bolso, para manter várias atividades de inteligência necessárias para apoiar a segurança nacional dos EUA. Do meu bolso.” (E é bolso fundo: segundo o Wall Street Journal, a Blackwater obteve lucros de mais de $600 milhões, em 2008.)
No Afeganistão
A paisagem afegã, vista em panorâmica a 200 nós, é uma neblina marrom-alaranjada. A imagem é ainda menos definida, pelo fato de que Erik Prince voa sobre ela, à altura de 200 pés. A parte traseira do avião – um pequeno C-212 de fabricação espanhola – está aberta, e vê-se a silhueta de Prince contra o azul do céu. Veste botinas Oakleys, calças caqui de combate e uma camiseta branca; parece espantosamente jovem, adolescente.
A tripulação inicia uma contagem regressiva, Prince ajusta a cinta que o prende ao avião e toma posição. Ao ouvir o comando “agora!”, um jovem GI ao seu lado corta uma tira, e Prince empurra um contêiner para fora do avião. Vê-se o paraquedas preto que se abre e o avião salta para a frente, empurrado pela diferença de peso. A carga – alimentos e munição – cai dentro do perímetro demarcado de uma FOB [ing. Forward Operating Base], Base de Operação Avançada de um esquadrão de elite das Forças Especiais dos EUA.
Cinco vezes por semana, o braço de aviação da Blackwater – uma empresa que leva o espantoso nome de Presidential Airways – voa nessas perigosas baixas altitudes até os mais remotos postos norte-americanos no Afeganistão. Desde 2006, a empresa de Prince está encarregada de prestar esse “serviço chave” aos soldados norte-americanos, que implica milhares de viagens de entrega. A Blackwater também fornece serviços de segurança ao embaixador Karl Eikenberry, dos EUA, e sua equipe; e dá treinamento a unidades especiais da polícia antinarcóticos do Afeganistão.
De volta a terra firme, Prince, com um BlackBerry à cintura e uma 9 mm do outro lado, faz rápida visita de inspeção a uma das bases da Blackwater no nordeste do Afeganistão, mostrando alguns prédios recentemente atingidos por fogo de morteiros. Um avião-robô circula no céu, as câmeras vasculhando os arredores. Prince escala uma torre de observação e examina um ponto, abaixo, onde dois de seus empregados quase foram mortos em julho, por uma bomba de fabricação caseira. “Sem contar os postos de controle de passagem de civis, essa é a base mais próxima da fronteira [do Paquistão].” A voz ganha solenidade melodramática. “Quem mais construiu posto tão avançado de observação ao longo da principal via de infiltração para os Talibã, tão próximo da última localização conhecida de Osama bin Laden?” Não chega a ter o entusiasmo do “Para Aqaba!” de Lawrence da Arábia, mas o quadro é o mesmo.
Sair “dos holofotes”
A Blackwater está no Afeganistão desde 2002. Naquele momento, o diretor executivo da CIA A. B. “Buzzy” Krongard, respondendo às queixas de seus agentes, que estavam “muitíssimo preocupados porque os afegãos estão chegando à cerca ou abrindo as portas”, alistou a empresa para dar proteção à base da Agência em Cabul. “Baixar o perfil”, ou “sair dos holofotes” valeu a pena: enquanto a Blackwater trabalhou ali, nenhum agente da CIA morreu no Afeganistão, segundo fontes próximas da empresa. (Mas isso pode ser conversa de compadres. Krongard, depois, serviria como conselheiro não remunerado da direção da Blackwater, até 2007. E seu irmão Howard “Cookie” Krongard – inspetor geral do Departamento de Estado – teve muito trabalho para comprovar absoluta separação dos negócios com a Blackwater no Afeganistão, depois que se revelou o envolvimento do irmão com aquela empresa. Buzzy, depois, se demitiu).
À medida que crescia a confiança da CIA na Blackwater, aumentavam as responsabilidades da empresa, que passaram da proteção estática à segurança móvel – cobertura ao pessoal da Agência, sempre temerosos de suicidas-bombas, emboscadas e bombas de fabricação caseira semeadas ao longo e às margens das estradas, em suas andanças pelo país. Mas em 2005 a Blackwater, adaptada para fazer a guarda pessoal dos agentes da CIA, começava a parecer-se demais com a própria CIA.
Enrique “Ric” Prado tornou-se empregado da Blackwater depois de trabalhar como chefe de operações do Centro de Contraterrorismo (CTC) da CIA. Pouco depois, o chefe de Prado, J. Cofer Black, diretor geral do CTC também se mudou para a Blackwater. Foi seguido, depois, pelo superior dos dois, Rob Richer, segundo em comando de todas as operações clandestinas da CIA. Dos três, Cofer Black sempre foi o mais afamado.
Como Bob Woodward contou em seu livro Bush at War, dia 13/9/2001 Black prometeu ao presidente Bush que, quando a CIA tivesse “dado cabo” da Al-Qaeda, “eles estariam com ninhos de moscas nas córneas”. Segundo Woodward, “Black ficou conhecido, no círculo dos íntimos de Bush, como ‘o cara das moscas nas córneas’”. Richer e Black rapidamente ajudaram a criar nova empresa, a Total Intelligence Solutions (que coleta dados para avaliação de risco, vitais para empresas interessadas em investir além-mar). Mas em 2008 ambos deixaram a Blackwater. Em 2010, o presidente da Blackwater, Gary Jackson, seguiu o mesmo rumo.
Durante todo esse tempo, Black e Ric Prado, ex-parceiro de Richer, primeiro como funcionários da CIA, depois como empregados da Blackwater, trabalharam em silêncio com Prince como vice-presidentes de “programas especiais”, para prover a agência com um serviço de que todos os serviços de inteligência precisam muito: a possibilidade de negar tudo.
Pouco depois do 11/9, o presidente Bush lançou uma ordem de “localizar e matar” que deu à CIA salvo conduto para matar ou capturar membros da Al-Qaeda. (Por efeito de ordem presidencial do presidente Gerald Ford, desde 1976 os agentes da inteligência dos EUA eram proibidos, por lei, de organizar e executar assassinatos).
Experimentado funcionário e agente, Prado ajudou a viabilizar o cumprimento da autorização presidencial, reunindo seleta equipe de “faixas azuis” [ing. blue-badgers], como os agentes do governo são conhecidos. Faziam serviço de três etapas: encontrar, acertar e limpar. “Encontrar” um alvo determinado, “acertar” a rotina do alvo [no sentido de descobrir e fixar um roteiro] e “limpar” no sentido de, sendo necessário, matá-lo.
Quando chegou a hora de treinar essa equipe, a Agência, dizem fontes internas, procurou Prince. Preocupados em não atrair excessiva atenção, a equipe não foi treinada no centro da treinamento da empresa na Carolina do Norte, mas em uma propriedade particular de Prince, a uma hora de Washington, DC. A propriedade é semelhante a outras mansões dos grandes proprietários rurais, com pastagens e criação de cavalos, além de outras instalações menos ortodoxas, como um stand de treinamento de tiro, coberto. Mais uma vez, Prince inspirava-se no agente “Bill, o Selvagem”: “Os primeiros agentes do Office of Strategic Services (OSS) da II Guerra Mundial também foram treinados numa propriedade rural privada, no interior do país.”
Um dos alvos dessa equipe, segundo fonte que conhece bem o programa, foi Mamoun Darkazanli, financiador da Al-Qaeda que vivia em Hamburgo e estava há anos no radar da Agência por suas ligações com três dos seqüestradores de 11/9 e com elementos condenados pelos atentados a bomba, em 1998, contra embaixadas dos EUA na África Oriental.
A equipe da CIA supostamente trabalhou “no escuro”, no sentido de que a presença da equipe na Alemanha não foi informada nem aos próprios superiores – muito menos ao governo alemão. Darkazanli foi seguido durante semanas, obedecendo ao padrão de procedimento, até decidir-se onde e quando seria abatido. Outro alvo, diz a mesma fonte, foi A. Q. Khan, o cientista paquistanês que partilhou know-how nuclear com Irã, Líbia e Coréia do Norte. Supõe-se que a equipe da CIA o tenha localizado em Dubai. Nos dois casos, insiste a mesma fonte, as autoridades em Washington escolheram suspender a caçada e não autorizaram o assassinato. Mas a inclusão de Khan na lista de alvos selecionados, contudo, sugere que o projeto de assassinatos seria mais amplo do que se suspeitava. (Para Gimigliano, porta-voz da Agência, “A CIA não discutiu – ao contrário do que a mídia divulgou – o conteúdo e substância desses projetos, ou de projetos anteriores”).
A mesma fonte que conhece as missões Darkazanli e Khan não aceita o que têm dito agentes atuais e passados da CIA: “Eles têm dito que o programa [de assassinatos seletivos] não avançou porque [os agentes] não tinham capacitação ou porque houve falha de cobertura. Não é verdade. A operação esteve ativa por muito tempo, em vários lugares, sem jamais ser descoberta. O programa morreu por falta de vontade política.”
Quando Prado deixou a CIA, em 2004, ele de fato carregou o programa com ele, depois de um curto hiato. Àquela altura, segundo fontes que conhecem o plano, Prince já estava ligado à Agência e os dois começaram a trabalhar na privatização do programa, mudando a composição da equipe, de faixas azuis, para uma combinação de “faixas verdes” (empresas contratadas pela CIA) e empresas nacionais de países do Terceiro Mundo (que não sabiam da conexão com a CIA).
Funcionários da Blackwater insistem que os recursos da empresa e a força-de-trabalho jamais foram diretamente utilizadas; essas iniciativas seriam de responsabilidade pessoal direta de Prince; a empresa, depois, reembolsava os gastos que houvesse. E que, apesar dos laços íntimos que os ligavam à CIA, nem Cofer Black nem Rob Richer participaram. Nas palavras de Prince: “Estávamos construindo capacidade unilateral e intransferível. Se desse errado, não esperávamos que o chefe de polícia, o embaixador ou fosse quem fosse nos tirasse da cadeia.” Prince insiste que, se essa equipe tivesse realmente funcionado, a Agência teria ganho pleno controle. Mas não funcionou, devido ao que Prince chama de “osteoporose institucional”; e a parte conclusiva do programa de assassinatos seletivos não decolou.
Em algum momento depois de 2006, a CIA tentaria reativar o programa, segundo fonte interna, que conhece o plano em detalhes. “Cada um achou alguma razão para não participar”, diz a fonte. ‘Afinaram’. As pessoas diziam aos coordenadores ‘Tenho família, tenho outros compromissos’. Assim é a fucking CIA. Deveriam liderar a luta contra a al-Qaeda, mas não tinham quem fizesse.”
Outras fontes, que também conhecem o programa, são mais generosas; para elas, “por que um funcionário de pensamento direitista assinaria um programa de assassinatos, quando via seus colegas – que pensaram que receberiam cobertura legal para outro esforço sensível, como o programa secreto de “interrogatórios reforçados” em bases secretas da CIA em países estrangeiros – enrolados em problemas com a justiça?”
Os EUA e Erik Prince, ao que parece, demoraram demais para separarem-se do negócio de assassinatos. Sob os aviões-robôs que voam com auxílio da Blackwater por cima da fronteira Afeganistão-Paquistão (o presidente Obama autorizou mais de três dúzias desses ataques), Prince diz que ele e uma equipe de cidadãos estrangeiros ajudaram a encontrar e acertar um alvo em outubro de 2008, e depois deixaram a etapa de “limpar” para outros.
“Na Síria”, diz Prince, “demos todos os sinais de inteligência para a geolocalização dos bandidos em área em que ninguém entrava.” Subsequentemente, uma equipe das Forças Especiais dos EUA lançou ataque de helicóptero para matar um agente intermediário da Al-Qaeda, Abu Ghadiyah. Ghadiyah, cujo nome real é Badran Turki Hishan Al-Mazidih, foi dado por morto, com seis outros – embora haja dúvidas sobre a presença de Ghadiyah no dia do ataque, como se leu em reportagem recente assinada por Reese Ehrlich e Peter Coyote, em Vanity Fair.
E até há dois meses – quando, diz Prince, o governo Obama tirou o fio da tomada –, Prince continuava profundamente envolvido em artes ocultas. Segundo fontes internas, continuava a trabalhar em operações para reunir informações de inteligência, de um local secreto, nos EUA, coordenando remotamente o movimento de espiões que trabalham infiltrados num dos países do chamado “Eixo do Mal”. Missão deles: informação classificada.
Estratégia de retirada
Voando de volta a Cabul, Prince volta ao tópico de o quanto se sente exposto desde que a mídia revelou seu papel no programa de assassinatos. A tempestade que começou em agosto continuou a crescer e pode estar levando muitos a já não saber com certeza se o próprio Prince não seria hoje mais risco que patrimônio. Ele diz que não entende porque se cancelariam alguns esforços e programas de alto risco e alto ganho contra alguns dos mais implacáveis inimigos dos EUA, por medo de que se envolver implique riscos inadmissíveis, dado o clima político.
Parece não acreditar que funcionários do governo dos EUA dêem sinais claros de que cortarão a mangueira de ar daqueles programas. “Trabalho, às claras e clandestinamente, sempre servindo aos EUA, desde que me alistei pela primeira vez nas Forças Armadas”, Prince observa. Depois de 12 anos de trabalho para construir sua empresa, diz que quer entregá-la aos empregados e a um comitê de administração, e deixar, de vez, de prestar serviços à Defesa. Há quem diga que está em curso uma luta interna pelo poder, entre os que querem redefinir o rumo do que possa ser uma Blackwater pós-Prince. Prince repete, simplesmente, “Estou farto.”
No passado, Prince alimentou a ideia de construir um navio – completo, com pessoal de segurança, médicos, helicópteros, remédios, alimentos e combustível – e estacioná-lo no litoral da África, para oferecer “ajuda e dentes” nos pontos mais difíceis do continente ou enfrentar os piratas da Somália. Chegou a pensar em criar uma brigada de rápido deslocamento, a ser alugada, sob pagamento, a governos estrangeiros.
Por hora, contudo, Prince diz que tem planos muito mais modestos. “Vou ser professor de ginásio”, diz, sem piscar. “Posso ensinar história e economia. E sou treinador de luta livre. Por que não? Indiana Jones também foi professor.”
Nota de Traducão
[1] A Avenida Madison, em NY, é, tradicionalmente, endereço das primeiras e principais agências de publicidade do mundo.
O artigo original, em inglês, pode ser lido aqui: Tycoon, Contractor, Soldier, Spy
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