O prestigioso sociólogo francês Henri Mendras batizou o termo "contra-sociedade" para referir-se a todos os integrantes de uma determinada sociedade que não podem ou não querem seguir o ritmo e as exigências que esta impõe de modo implacável.
Seu expoente natural seria aquele indivíduo que, por impossibilidade ou simples falta de desejo, não consegue adaptar-se à velocidade com que se move o seu entorno social, transformando-se, consequentemente, em um verdadeiro pária dentro da sociedade a que pertence. Ou seja, um homo sacer, um desadaptado, um ser verdadeiramente excluído.
Nos dias atuais, bem poderíamos falar de uma contra-sociedade mundial. A mesma estaria composta por todos aqueles que não conseguiram assimilar o ritmo evolutivo da sociedade globalizada. O número de desadaptados pode contabilizar-se em dezenas de milhões.
E, mais ainda, dia a dia aumenta o número de pessoas que, em todas as regiões do planeta, albergam o temor e a angústia de sentirem-se excluídas das filas dos seres produtivos. São pessoas comuns que vivem atormentadas e sob ameaça permanente da exclusão social.
Os números dessa contra-sociedade têm sido manejados com bastante frequência. Michel Rocard, ex-primeiro-ministro francês, aponta os seguintes dados: 30% da população ativa dos Estados Unidos vivem em situação de pobreza ou precariedade social, ao passo que 30% da população ativa nas três grandes regiões do mundo industrializado podem qualificar-se como desocupados ou marginalizados.
Por sua parte, Jacques Chirac, então presidente da França, assinalava, em março de 1998, que os países que compõem a União Européia contavam com 18 milhões de desempregados e 50 milhões de cidadãos sob a ameaça de exclusão social. Os países integrantes da OCDE, o clube dos Estados mais ricos do planeta, contam hoje com 35 milhões de desempregados.
E o que dizer dos países em vias de desenvolvimento? A conjunção entre um desenvolvimento técnico acelerado, sustentado na automação, associado à ausência ou abandono generalizado das normas de proteção social, estão fazendo aumentar, assustadoramente, os números de desempregados e de subempregados.
O Brasil, lamentavelmente, é um bom exemplo de país que tem aumentado substancialmente sua competitividade e inserção na economia global às custas de um notável incremento das filas de desempregados.
A lógica deste perverso processo é simples. Sob o impacto de uma competição produtiva sem fronteiras e sem mesuras, em que a redução de custos transformou-se em dogma, não há espaços para considerações sociais.
Existe a tendência, por essa via, a um nivelamento por baixo, na qual a mão-de-obra mais barata, ou a substituição desta pela tecnologia, determinam a sobrevivência dos produtos no mercado. A tecnologia e a redução de custos laborais são os grandes dinamizadores do novo crescimento econômico.
Como bem assinala a revista Fortune, em sua edição de abril de 2006: "Os avanços tecnológicos unidos aos implacáveis desempregos em massa dispararam a produtividade e elevaram, consideravelmente, os ganhos da indústria".
Frente a essa dura realidade, os países apresentam a tendência de transformarem-se em um autêntico bazar persa, competindo entre si para fazer maiores concessões ao grande capital, como via para captar inversões e garantir o crescimento econômico. O resultado dessa postura é que se observa o abandono do sentido do coletivo e do imprescindível papel do Estado em matéria de arbitragem e de observância da regulamentação social.
Que outra coisa poderia fazer o Estado? Este se vê incapacitado para fazer frente ao volume e à dinâmica dos capitais privados. Os três maiores fundos de pensão estadunidenses, Fidelity Investments, Vanguard Group, Capital Research & Managements, controlam em torno de US$ 500 bilhões. Impotente, o Estado teve de adaptar-se às exigências do grande capital, sem poder evitar que o homem se transforme, cada vez mais, no lobo do próprio homem.
A força emergente após o ocaso do Estado é, obviamente, o grande capital privado transnacional. Este governa a economia globalizada, passando por cima de fronteiras e atropelando governos, impondo leis à sua conveniência e promovendo uma acirrada e desumana competição entre países, a serviço de seus interesses.
Prova inconteste disso encontramos no acordo multilateral sobre inversões que está sendo negociado na Organização Mundial de Comércio, que submeteria as leis regulatórias dos países membros à s objeções internacionais, restringindo a capacidade dos Estados para ditar políticas econômicas de interesse nacional.
A pergunta a fazer, nesse caso, é a seguinte: que lógica domina o grande capital transnacional? Esta se sintetiza em uma consideração fundamental: a rentabilidade imediata. A necessidade de dar resposta à s exigências de curto prazo, de um gigantesco número de acionistas anônimos, tem se transformado, efetivamente, na razão de ser fundamental do processo econômico em curso.
Dentro desse contexto, as grandes corporações competem ferozmente entre si para captar as preferências dos acionistas, livrando-se de tudo aquilo que possa significar um peso na busca por maiores rendimentos.
Porém, quem é esse acionista anônimo que sustenta a engrenagem e dita as regras da economia globalizada? Este não é outro, senão o homem comum: o operário, o gerente médio, o funcionário público, o profissional liberal, a dona-de-casa. Ou seja, o mesmo homem comum que vive atormentado pelo fantasma do desemprego e com medo de vir a engrossar, com sua presença, as filas da grande contra-sociedade dos dias atuais.
Através de sua cotização e na busca de máximo rendimento para as suas economias, investe em fundos de pensões mutuais ou, através de pequenas inversões de capitais, nas bolsas de valores. Dessa maneira, paradoxalmente, ele tem se transformado em atuante protagonista deste perverso processo econômico que o atemoriza e o encurrala.
Segundo um curioso processo circular imposto por esta globalização perversa em que vivemos na atualidade, o homem comum tem se transformado em seu próprio inimigo, erigindo-se feroz e desapiedadamente frente a si mesmo.
Manuel Cambeses Júnior
Coronel-aviador; conferencista especial da ESG, membro titular do Instituto de Geografia e História Militar do Brasil e vice-diretor do Instituto Histórico-Cultural da Aeronáutica (Incaer).
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