O padre Hans Küng, 80 anos, é um dos maiores teólogos da atualidade e uma referência mundial em religião. Amigo do papa Bento XVI dos tempos da faculdade, o religioso suíço foi responsável pela indicação dele à cátedra da Universidade de Tübingen, na Alemanha, nos anos 60. Consultor do Concílio Vaticano II (1962-1965), que modernizou a Igreja, ele surpreendeu o mundo em 1970 com a obra Unfehlbar? Eine Anfrage (Infalibilidade? Um inquérito), em que questionou a infalibilidade papal, colocando em xeque o dogma de que o papa está sempre correto quando delibera sobre questões de fé ou moral. O livro gerou polêmica no Vaticano e o professor ficou proibido de ensinar a matéria em nome da Igreja. Küng e Bento XVI tomaram rumos opostos, ficaram afastados por quase quatro décadas e se reencontraram em 2005 para discutir o futuro do catolicismo. “Deixamos de lado os temas controversos da reforma na Igreja, porque temos opiniões opostas”, diz Küng.
“Mas temos pensamentos semelhantes quanto à relação entre a fé cristã e a ciência, especialmente a biologia e o pensamento evolucionista.” Com mais de 25 livros traduzidos em dez idiomas, Küng atua no movimento ecumênico desde 1993 e é presidente do Weltethos, instituição voltada para o diálogo interreligioso.
REFORMA
O padre defende a abolição do celibato e a permissão para a ordenação das mulheres. “O celibato é uma regra ultrapassada, da Idade Média”, diz ele
ISTOÉ – O sr. acompanhou seis pontificados. Acha que a Igreja Católica mudou com o mundo? Hans Küng – Sem dúvida a Igreja Católica mudou muito nas últimas décadas. Claro que as mudanças mais importantes vieram após o Concílio Vaticano II (de 1962 a 1965). No entanto, há um retrocesso. Eu esperava que o papa Bento XVI proferisse um grande discurso e orações focados nas paróquias e arquidioceses que convocaram o Concílio Vaticano II há 50 anos e que ele valorizasse nas suas orações as grandes conquistas do movimento de renovação. Mas, infelizmente, ele fez exatamente o oposto.
ISTOÉ – Qual a sua opinião sobre a recente decisão do papa em reintegrar ao Vaticano bispos ultraconservadores excomungados, como Richard Williamson, que negou a existência do Holocausto e das câmaras de gás?
Küng – Até mesmo os bispos próximos ao papa concordam que foi uma péssima decisão. Penso que, mesmo como papa, ele não deveria ir contra as decisões do Concílio Vaticano II. Faria melhor se indicasse bispos mais inovadores e críticos, ao contrário daqueles que são ligados ao Opus Dei e a posturas conservadoras. Além da nomeação dos quatro da Fraternidade Pio X, ele nomeou no dia 31 de janeiro o ultraconservador Gerhard Maria Wagner, como arcebispo de Linz, na Áustria. Mais uma reafirmação da tendência tradicionalista.
ISTOÉ – Quem foi o grande papa do século XX?
Küng – João XXIII (1958 – 1963), dos primeiros anos do Concílio Vaticano II. Infelizmente, aqueles que o seguiram não foram igualmente construtivos. João Paulo II bloqueou reformas, o ecumenismo e o diálogo entre as Igrejas. Bento XVI é ainda mais conservador. Segue um curso reacionário, confere espaço para aqueles que pensam como ele. É uma espécie de restauração crescente daquilo que defende. Eu esperava que ele estivesse disposto a atos de coragem, mas ele se tornou cada vez mais radical e se cercou apenas de pessoas pouco críticas e que apenas o seguem. Não possui uma equipe de acadêmicos e bispos questionadores. Comete um erro após o outro e não há nenhum bispo para corrigi-lo. Não gosta de ser contestado.
ISTOÉ – O sr. foi contemporâneo de Bento XVI quando ele era cardeal na Alemanha. Que tipo de relação tiveram?
Küng – Ele é muito inteligente e era o especialista mais jovem em teologia durante o Concílio Vaticano II. Nessa época, tínhamos o mesmo desejo pela renovação da Igreja. Durante três anos, fomos professores de teologia dogmática na Universidade de Tübingen (na Alemanha) e tínhamos ótimas relações, que entraram em choque a partir de 1968. Ele se mudou para a Bavária, se tornou arcebispo de Munique e prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, a antiga Santa Inquisição em Roma. Tornou-se um homem de carreira eclesiástica, defendendo as tradições e distante da renovação. Como papa, confirmou a postura tradicionalista.
ISTOÉ – Acredita que as ideias conservadoras do papa encontram apoio de um público ávido pelo retorno às tradições?
Küng – Claro que há conservadores que pensam como ele, mas as mudanças estão chegando. Neste ano, tivemos provas da atmosfera de renovação que paira no mundo, como a transição de Bush para Obama. O papa era amigo de Bush e até celebrou o seu aniversário com ele, na Casa Branca. Uniuse ao presidente nas campanhas contra o controle de natalidade, a contracepção, o aborto, as reformas e liberdades civis. Agora, os americanos têm um novo presidente, disposto a corrigir todos os erros terríveis que o seu antecessor cometeu. Assim como os americanos que elegeram Obama, o papa também deveria optar pela renovação, até porque está bem óbvio que a sua tentativa de restauração foi malsucedida.
ISTOÉ – O que pensa dos teólogos da América Latina?
Küng – Conheço a maioria dos teólogos ligados à Teologia da Libertação, principalmente o peruano Gustavo Gutierrez, fundador do movimento. Mas, particularmente, gosto muito de Leonardo Boff e de outros da mesma linha.
Eles tiveram uma influência muito positiva sobre os brasileiros em situação de pobreza. Fiquei muito triste quando Bento XVI, então cardeal no Vaticano, fez tudo para eliminar a Teologia da Libertação e quando o papa João Paulo II nomeou bispos que são, hoje, inimigos do movimento. Naquele tempo, havia grandes cardeais no Brasil e na América Latina, como dom Aloísio Lorscheider. Hoje, infelizmente, o papa nomeia bispos que são favoráveis ao Opus Dei e a movimentos conservadores. Estes grupos, definitivamente, não estão interessados em resolver a situação de pobreza da América Latina.
ISTOÉ – Qual a sua opinião sobre as punições que Leonardo Boff sofreu durante o pontificado de João Paulo II?
Küng – Foi semelhante à Inquisição. Não houve um processo, foi contra os direitos humanos. Ele simplesmente foi condenado. Ninguém nunca entendeu direito o porquê. Com as críticas, naturalmente, ele se posicionou contra as doutrinas da Igreja e o poder dela. Depois disso, foi sumariamente excomungado. Felizmente, ele sobreviveu a tudo aquilo e ainda está em atividade. Acredito que se Bento XVI quer uma reconciliação com os bispos cismáticos seria melhor se, antes de tudo, ele se reconciliasse com os teólogos, especialmente aqueles da América Latina, que são os que seguem os fundamentos do Concílio Vaticano II.
ISTOÉ – No Brasil, há um forte crescimento das igrejas evangélicas. O que a Igreja Católica, como instituição, deve aprender com os evangélicos para manter ou aumentar o número de fiéis?
Küng – Ao contrário dos evangélicos, não acredito que falte dinheiro para os católicos. Mas acredito que eles poderiam aprender a usar melhor o dinheiro que têm. Acho que a Igreja Católica, assim como a evangélica, deveria admitir homens casados no sacerdócio, para reverter o esvaziamento dos seminários. Nas igrejas evangélicas há um contato mais próximo entre as pessoas da comunidade religiosa, inclusive com fortes laços de amizade e de ajuda mútua. É isto que está faltando na Igreja Católica. Além disso, a liturgia católica muitas vezes é chata e faz as pessoas desistirem das missas. Os sermões também não são de grande ajuda na vida prática. Por isso, muitas pessoas preferem se concentrar em pequenas aglomerações de fé cristã do que nas paróquias, que têm muita hierarquia e pouca vida em nível local.
ISTOÉ – O número de sacerdotes está em queda. Um padre no Brasil chega a ser responsável por 20 paróquias. Como combater a crise de vocações?
Küng – Sem dúvida, deve-se abolir a lei do celibato e permitir a ordenação das mulheres. O celibato é uma regra ultrapassada, da Idade Média, com base no primeiro milênio do cristianismo. No século XI, os papas estabeleceram a regra como lei universal a todos os cristãos. Este clericalismo foi, inclusive, uma das causas para a divisão entre as Igrejas do Ocidente e do Oriente. Acredito que já está em tempo de abolir a exigência, até porque vai contra a liturgia cristã e a teoria do Novo Testamento, que não diz em nenhum momento que padres e bispos não podem ter uma mulher ou esposa. Além de ir contra os direitos humanos, que asseguram a todos o direito ao casamento. Quanto à ordenação, a Igreja precisa considerar que as mulheres tiveram um grande papel na história de Jesus e estão muito presentes nos atos do Evangelho. Além da sua grande participação nas comunidades cristãs. No Evangelho, São Paulo fala sobre uma apóstola chamada Junia, muito atuante entre eles. Com o tempo, a Igreja foi se tornando cada vez mais masculina e patriarcal. Isso deve ser corrigido. A mudança é necessária.
ISTOÉ – A Igreja Católica é contra a pesquisa com células-tronco. O que o sr. pensa sobre isso? Küng – Deve haver razoabilidade para analisar as pesquisas com célulastronco. Por um lado, o ovo fertilizado já é uma vida humana. Por outro lado, não é ainda uma pessoa humana. Sigo a doutrina que diz que devemos estabelecer uma distinção entre vida humana e a pessoa humana. Devemos ser muito prudentes nas pesquisas com células-tronco, mas não devemos proibi-las completamente.
ISTOÉ – Pesquisas recentes revelaram que quanto maior o nível de inteligência, menor a fé ou espiritualidade. Fé e inteligência são compatíveis?
Küng – Não acredito nestes critérios de QI, que tentam medir a inteligência das pessoas e fazer comparações deste tipo. Acredito que são critérios burros e limitados. Não há nenhuma contradição entre fé e inteligência. Posso ser um exemplo. Tenho muita fé e acredito que tenho alguma inteligência (risos).
ISTOÉ – Pesquisas recentes revelaram que quanto maior o nível de inteligência, menor a fé ou espiritualidade. Fé e inteligência são compatíveis?
Küng – Não acredito nestes critérios de QI, que tentam medir a inteligência das pessoas e fazer comparações deste tipo. Acredito que são critérios burros e limitados. Não há nenhuma contradição entre fé e inteligência. Posso ser um exemplo. Tenho muita fé e acredito que tenho alguma inteligência (risos).
Não podemos simplesmente julgar o Islã sem conhecer o Islã. Temos que entender que há diferentes Islãs, assim como há diferentes cristãos no cristianismo. E especialmente elaborar uma ética global com base em valores comuns das necessidades sociais e individuais. Estes valores e padrões éticos compartilhados devem estar fundamentados na crença das diferentes religiões e daqueles que não têm crenças. É o que nos ajudará a manter a nossa sociedade unida. Encontrar padrões éticos comuns a todos.
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