Luiz Felipe Lampreia
Aproxima-se a conferência de revisão do Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP), que ocorrerá em maio próximo. Qual é a importância desse evento. É uma das últimas oportunidades para impedir a multiplicação de Estados possuidores de armas nucleares. Já são nove os países que, declaradamente ou não, contam com artefatos nucleares. Se os esforços de contenção atualmente em marcha falharem, em especial no caso do Irã, muitos países com capacidade tecnológica, mas que até aqui optaram pelo caminho militar, poderão faze-lo em breve. Calcula-se que pelo menos 20 países estariam nessa categoria. Ora, com 30 países armados de bombas atômicas, as probabilidades de seu emprego em conflitos aumenta geometricamente, com as consequências terríveis que o leitor pode imaginar.
O atual secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência da República e ex-secretário-geral do Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães, é um homem direito, que conheço bem desde que fomos colegas de turma no Instituto Rio Branco. Seu traço principal é assumir posições frontalmente. Eu quase sempre discordo delas, mas respeito sua sinceridade. Em recente entrevista ao O Estado de S. Paulo, Samuel disse que "foi um erro assinar o Tratado de Não-Proliferação em 1997, porque o Brasil era um dos poucos que tinha em sua Constituição a obrigação de desenvolver atividades nucleares apenas para fins pacíficos. Só se justifica nossa participação no TNP na medida em que potências nucleares reduzam e eliminem arsenais. Mas é preciso observar a Constituição. E qualquer tratado em que o Brasil não esteja em igualdade de condições não corresponde ao princípio de igualdade soberana entre os Estados. O Tratado de Não-Proliferação é um tratado desigual".
Terá sido realmente um erro assinar o TNP?
Desde o início do governo Fernando Henrique Cardoso, em 1995, decidimos reavaliar nossa posição tradicional, que desde 1968 era a de não assinar esse tratado. O Brasil já se havia comprometido a não desenvolver armas nucleares tanto em artigo lapidar da Constituição de 1988 quanto em diversos pactos firmados em nível bilateral, com a Argentina, e regional, com a América Latina, e já havia aceito todas as salvaguardas da Agência Internacional de Energia Atômica (Aiea). A recusa de assinar o Tratado de Não-Proliferação nos inseria num grupo mínimo de países como a Índia, o Paquistão e Israel, que estavam desenvolvendo seus programas nucleares porque viviam em contextos de alto risco para a segurança nacional, o que felizmente não era, como não é, o caso do Brasil.
Após amplas consultas internas, o presidente Fernando Henrique tomou a decisão de assinar o tratado, tarefa que me coube na sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em junho 1997. Essa iniciativa foi tomada por coerência, visando a influir para o reforço do tratado, inclusive no que diz respeito às obrigações das potências nucleares.
O embaixador Samuel tem razão ao afirmar que os cinco países nucleares não cumpriram a obrigação de reduzir significativamente seus estoques de armas nucleares. Não é ainda suficiente a assinatura recente de um novo tratado Start (Pacto Estratégico de Redução de Armas) entre os dois países que possuem o maior número desses artefatos: os Estados Unidos e a Rússia. Porém, é incongruente a afirmação de que, como temos o compromisso constitucional taxativo, não poderíamos ter assinado o referido tratado. Tomado ao pé da letra, esse argumento pode ser lido como: não precisamos assinar nenhum compromisso internacional se os assumimos internamente. Isso equivale a dizer que o direito internacional é supérfluo.
Mais absurda ainda é a invocação de necessidade de igualdade absoluta entre os Estados como condição preliminar para assinar um tratado. Se fosse assim, o Brasil não poderia ter assinado a Carta da ONU, o Convênio Internacional do Café ou os convênios de criação do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional - pois todos esses acordos, para citar apenas um punhado deles, contêm dispositivos dando veto a alguns poucos ou votos ponderados maiores a certos países (inclusive ao Brasil) do que a outros.
Em nova entrevista - desta feita ao jornal O Globo, em 1.º de abril corrente - o ministro afirma que "qualquer medida que venha a reduzir a autonomia do Brasil na produção do ciclo de enriquecimento é algo extremamente prejudicial". Como sabe qualquer pessoa minimamente informada sobre o assunto, a taxa de enriquecimento de urânio necessária para alimentar usinas nucleares geradoras de energia é inferior a 10%. Já para confeccionar armas nucleares, a taxa requerida é de 90%. De qual das duas hipóteses está falando Samuel Pinheiro Guimarães. O Brasil precisa ter "autonomia" para chegar à meta de 90%, ou seja, para ter a capacidade de fabricar bombas atômicas.
Ninguém no mundo se opõe ao nosso programa nuclear justamente porque é considerado como sendo de natureza pacífica, mas a ambiguidade de alguns dirigentes brasileiros sobre os seus objetivos pode ser gravíssima para os interesses nacionais.
O Brasil tem uma longa e honrosa tradição pacífica, que é um galardão diplomático de nosso país, desde o Barão do Rio Branco. Cooperar para impedir a proliferação de armas nucleares é uma tarefa condizente com essa tradição e, em minha opinião, um imperativo constitucional e moral de qualquer governo brasileiro. Por isso devemos atuar para fortalecer, sem subterfúgios, a disciplina internacional, cujo instrumento básico é o tratado de 1968.
EMBAIXADOR, FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES
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