´´Observe as tendências mas não Siga a maioria`` Thiago Prado


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domingo, 11 de abril de 2010

Aquífero descoberto no Norte seria maior que Guarani

Aquífero descoberto no Norte seria maior que Guarani

Reserva, sob Amazonas, Amapá e Pará, permitiria acesso mais fácil à água por ser mais espessa e menos profunda

Karina Ninni - O Estado de S.Paulo



Pesquisadores da Universidade Federal do Pará (UFPA) divulgarão oficialmente na semana que vem a descoberta do que afirmam ser o maior aquífero do mundo. A imensa reserva subterrânea sob os Estados do Pará, Amazonas e Amapá tem o nome provisório de Aquífero Alter do Chão - em referência à cidade de mesmo nome, centro turístico perto de Santarém.

"Temos estudos pontuais e vários dados coletados ao longo de mais de 30 anos que nos permitem dizer que se trata da maior reserva de água doce subterrânea do planeta. É maior em espessura que o Aquífero Guarani, considerado pela comunidade científica o maior do mundo", assegura Milton Matta, geólogo da UFPA. A capacidade do aquífero não foi estabelecida. Os dados preliminares indicam que ele possui uma área de 437,5 mil quilômetros quadrados e espessura média de 545 metros. "É menor em extensão, mas maior em espessura do que o Guarani."

Matta cita a porosidade da rocha em que a água está depositada como um dos indícios do potencial do reservatório. "A rocha é muito porosa, o que indica grande capacidade de reserva de água. Além do mais, a permeabilidade - a conexão entre os poros da rocha - também é grande."

Segundo ele, apesar de as dimensões da reserva não terem sido mapeadas, sai do aquífero a água que abastece 100% de Santarém e quase toda Manaus. "A vazão dos poços perfurados na região do aquífero é outro indício de que sua reserva é muito grande", afirma Matta.

Para o geólogo Ricardo Hirata, do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo, a comparação com o Guarani é interessante como referência, mas complicada. "O Guarani é um aquífero extremamente importante para o Brasil e para a América Latina, mas não é o maior do mundo. Há pelo menos um aquífero, na Austrália, que é maior que o Guarani", contesta

Para Hirata, também se deve levar em conta a localização das reservas ao se comparar as duas. "Pela alta demanda e pela baixa disponibilidade de água que temos nas Regiões Sudeste e Sul, podemos dizer que o Guarani é estrategicamente muito mais importante do que um aquífero no Norte, mesmo que imenso."

Matta afirma categoricamente que o Aquífero Alter do Chão pode abastecer toda a população do mundo por centenas de anos. Afirma também que o acesso à água da reserva nortista é fácil. "Aqui, o sujeito encontra água a uma profundidade de 300, 350 metros. Para chegar até a reserva do Guarani, às vezes é preciso cavar mais de mil metros.""

O próximo passo do pesquisador é conseguir financiamento para um estudo sistemático da reserva subterrânea. Matta já concluiu um projeto para pedir recursos ao Banco Mundial.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Da Guerra total à guerra sem limites

Da Guerra total à guerra sem limites
O GLOBO, 18.08.2007

O conceito de "Guerra total" estrutura-se no século XIX, quando o general Sherman, na Guerra Civil Americana (1861-65), ataca indistintamente alvos civis e militares, destruindo casas, campos agricolas, indústrias e bens particulares. Ao mesmo tempo, utilizou-se dos novos meios disponíveis da Revolução Industrial Americana para superar os Confederados, culminando no Incendio de Atlanta e na "Grande Marcha para o Mar". Estratégias similiares foram utilizadas na Guerra da Criméia (1853-56), na Guerra Franco-Prussiana (1870-71), na Guerra dos Bôeres (1900-02). Na primeira Guerra Mundial (1914-18), o conceito de 'guerra total' passaria a desempenhar papel central.
O General Luddendorf, no Estado-Maior alemão, adotou tal estratégia, resultando no uso de gases venenosos, ataques maciços contra cidades e a guerra submarina irrestrita (atingindo navios cargueiros e de passageiros). Nesse momento, os progressos tecnológicos constituiriam um setor próprio da preparação bélica, ampliando a letalidade da guerra moderna.
A segunda Guerra (1939-45) viu a tecnologia - transportes, com a aviação; rádio e radar; o poder nuclear; a gestão fordista do abastecimento e da produção bélica - servir-lhe diretamente. Travou-se, no conjunto, todo tipo de guerra. Houve desde guerrilhas na ex-Iuguslávia ou Rússia, guerra química (japoneses contra chineses), até o ataque nuclear contra Hiroshima e Nagasaki, e o Holocausto com a sua gestão altamente tecnológica.
A indistinção entre alvos civis e militares tornou-se corrente: uma fábrica ou um entroncamento rodoferroviário é uma planta civil ou militar? Quando trens transportam tropas ou fábricas de tecidos produzem material para fardamentos, muitos estrategistas alegam tratar-se de legítimos alvos militares - mesmo atingindo centenas de civis. O mesmo ocorre com meios de comunicação. A TV e as rádios iraquianas em 1991, na primeira Guerra do Iraque, foram alvos iniciais da coligação da ONU, e a TV nacional da Sérvia, na Guerra do Kosovo, em 1999, foi atacada pelos EUA, morrendo vários jornalistas sob a acusação de propaganda pró-governo...
A Guerra do Iraque, de 1991, e a do Kosovo, em 1999, geraram imensas preocupações no âmbito do pensamento militar. Os estrategistas passaram a temer o chamado "excedente" de poder dos EUA. Buscou-se uma forma de dissuadir ações bélicas americanas, mesmo com recursos inferiores aos acumulados pelos EUA. Assim, dois estrategistas chineses, os coronéis Qiao Liang e Wang Xiangsul, publicaram o livro "Guerra Sem Limites" (publicação eletrõnica da Escola de Guerra Naval, Rio, 2003). Trata-se da aplicação de uma nova noção de "guerra nas condições de alta tecnologia".
Estratégia Revolucionária em seus preceitos que abandonaram as noções de guerra de massas e de caráter classista, típicas do maoismo, para pensar a guerra "como a sintese das técnicas e da mundialização", e centrar a ênfase na dominância das ações "não-guerreiras" - como uso dos meios econômicos, computacionais, psicológicos. Da mesma forma, a condução da guerra pode e deve, segundo eles, "ultrapassar todas as fronteiras e limites", incluindo-se aí a indistinção entre civis e militares - mesmo no tocante a médicos, jornalistas ou diplomatas. Na nova estratégia, "todos os meios serão disponíveis, a informação será geral e o campo de batalha será difuso". Não se trata de retorno às formas de guerra irregular, como as guerrilhas. Agora, a ênfase é na alta tecnologia, incluindo hackers e a manipulação do fluxo de capitais, disseminação de zoonoses e de epidemias.
Desde então, a noção de "guerra assimétrica" - a guerra do mais forte contra o mais fraco - passa a estar inteiramente assimilada no conceito de "guerra sem limites". A guerra do mais fraco será, no século XXI, sempre irrestrita, utilizando-se de meios não convencionais. Evidentemente, isto explica o temor de grandes potências acerca das chamadas armas de destruição "em massa". Porém, armas podem ser construídas a partir da tecnologia disponível no cotidiano dos países mais avançados.
O uso de tecnologias domésticas (laptops, celulares, aparelhos de radiologia médica, GPS) passam a desempenhar um papel central nesta nova e cruel forma de estratégia de guerra. Sequestros e execuções, com transmissão garantida pela Internet, levam a guerra ao coração dos países mais poderosos, servindo simultaneamente para dissuadir empresas a se instalarem num país conflitado e desencorajar suas populações a apoiar as ações militares dos governos. Nestas novas condições de Guerra, todos são alvos potenciais.
Hoje, o Iraque é o seu grande laboratório

Francisco Carlos Teixeira da Silva é professor da UFRJ e autor da "Enciclopédia de Guerras e Revoluções do século XX".

quarta-feira, 7 de abril de 2010

A proliferação de armas nucleares

Luiz Felipe Lampreia



Aproxima-se a conferência de revisão do Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP), que ocorrerá em maio próximo. Qual é a importância desse evento. É uma das últimas oportunidades para impedir a multiplicação de Estados possuidores de armas nucleares. Já são nove os países que, declaradamente ou não, contam com artefatos nucleares. Se os esforços de contenção atualmente em marcha falharem, em especial no caso do Irã, muitos países com capacidade tecnológica, mas que até aqui optaram pelo caminho militar, poderão faze-lo em breve. Calcula-se que pelo menos 20 países estariam nessa categoria. Ora, com 30 países armados de bombas atômicas, as probabilidades de seu emprego em conflitos aumenta geometricamente, com as consequências terríveis que o leitor pode imaginar.

O atual secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência da República e ex-secretário-geral do Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães, é um homem direito, que conheço bem desde que fomos colegas de turma no Instituto Rio Branco. Seu traço principal é assumir posições frontalmente. Eu quase sempre discordo delas, mas respeito sua sinceridade. Em recente entrevista ao O Estado de S. Paulo, Samuel disse que "foi um erro assinar o Tratado de Não-Proliferação em 1997, porque o Brasil era um dos poucos que tinha em sua Constituição a obrigação de desenvolver atividades nucleares apenas para fins pacíficos. Só se justifica nossa participação no TNP na medida em que potências nucleares reduzam e eliminem arsenais. Mas é preciso observar a Constituição. E qualquer tratado em que o Brasil não esteja em igualdade de condições não corresponde ao princípio de igualdade soberana entre os Estados. O Tratado de Não-Proliferação é um tratado desigual".



Terá sido realmente um erro assinar o TNP?

Desde o início do governo Fernando Henrique Cardoso, em 1995, decidimos reavaliar nossa posição tradicional, que desde 1968 era a de não assinar esse tratado. O Brasil já se havia comprometido a não desenvolver armas nucleares tanto em artigo lapidar da Constituição de 1988 quanto em diversos pactos firmados em nível bilateral, com a Argentina, e regional, com a América Latina, e já havia aceito todas as salvaguardas da Agência Internacional de Energia Atômica (Aiea). A recusa de assinar o Tratado de Não-Proliferação nos inseria num grupo mínimo de países como a Índia, o Paquistão e Israel, que estavam desenvolvendo seus programas nucleares porque viviam em contextos de alto risco para a segurança nacional, o que felizmente não era, como não é, o caso do Brasil.

Após amplas consultas internas, o presidente Fernando Henrique tomou a decisão de assinar o tratado, tarefa que me coube na sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em junho 1997. Essa iniciativa foi tomada por coerência, visando a influir para o reforço do tratado, inclusive no que diz respeito às obrigações das potências nucleares.

O embaixador Samuel tem razão ao afirmar que os cinco países nucleares não cumpriram a obrigação de reduzir significativamente seus estoques de armas nucleares. Não é ainda suficiente a assinatura recente de um novo tratado Start (Pacto Estratégico de Redução de Armas) entre os dois países que possuem o maior número desses artefatos: os Estados Unidos e a Rússia. Porém, é incongruente a afirmação de que, como temos o compromisso constitucional taxativo, não poderíamos ter assinado o referido tratado. Tomado ao pé da letra, esse argumento pode ser lido como: não precisamos assinar nenhum compromisso internacional se os assumimos internamente. Isso equivale a dizer que o direito internacional é supérfluo.

Mais absurda ainda é a invocação de necessidade de igualdade absoluta entre os Estados como condição preliminar para assinar um tratado. Se fosse assim, o Brasil não poderia ter assinado a Carta da ONU, o Convênio Internacional do Café ou os convênios de criação do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional - pois todos esses acordos, para citar apenas um punhado deles, contêm dispositivos dando veto a alguns poucos ou votos ponderados maiores a certos países (inclusive ao Brasil) do que a outros.

Em nova entrevista - desta feita ao jornal O Globo, em 1.º de abril corrente - o ministro afirma que "qualquer medida que venha a reduzir a autonomia do Brasil na produção do ciclo de enriquecimento é algo extremamente prejudicial". Como sabe qualquer pessoa minimamente informada sobre o assunto, a taxa de enriquecimento de urânio necessária para alimentar usinas nucleares geradoras de energia é inferior a 10%. Já para confeccionar armas nucleares, a taxa requerida é de 90%. De qual das duas hipóteses está falando Samuel Pinheiro Guimarães. O Brasil precisa ter "autonomia" para chegar à meta de 90%, ou seja, para ter a capacidade de fabricar bombas atômicas.

Ninguém no mundo se opõe ao nosso programa nuclear justamente porque é considerado como sendo de natureza pacífica, mas a ambiguidade de alguns dirigentes brasileiros sobre os seus objetivos pode ser gravíssima para os interesses nacionais.

O Brasil tem uma longa e honrosa tradição pacífica, que é um galardão diplomático de nosso país, desde o Barão do Rio Branco. Cooperar para impedir a proliferação de armas nucleares é uma tarefa condizente com essa tradição e, em minha opinião, um imperativo constitucional e moral de qualquer governo brasileiro. Por isso devemos atuar para fortalecer, sem subterfúgios, a disciplina internacional, cujo instrumento básico é o tratado de 1968.

EMBAIXADOR, FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES

terça-feira, 6 de abril de 2010

REPARAÇÃO DE GUERRA

REPARAÇÃO DE GUERRA

Parentes de brasileiros mortos por ataques nazistas na costa do Rio de Janeiro na Segunda Guerra querem indenização do governo alemão

Claudio Dantas Sequeira



Na Segunda Guerra Mundial, foram a pique 33 embarcações brasileiras em ataques de submarinos da Alemanha nazista. E, apesar do saldo de mais de mil mortos, até hoje nenhuma das famílias das vítimas – muitas delas civis – recebeu qualquer reparação por parte do Estado alemão, como ocorreu com civis de outros países por onde a máquina de guerra nazista marcou sua passagem com destruição e mortes. Essa história, no entanto, pode ser reescrita. Está na mesa do ministro Carlos Ayres Britto, do Supremo Tribunal Federal, a polêmica causa do barco Changri-lá. Um pequeno navio pesqueiro que foi torpedeado na manhã de 22 de julho de 1943, no litoral de Cabo Frio, no Rio de Janeiro, pelo submarino alemão U-199. Os corpos dos dez pescadores que estavam a bordo nunca foram encontrados.

“É uma obrigação da Alemanha indenizar os familiares dos mortos”, diz o advogado Luiz Roberto Leven Siano, especialista em direito marítimo que assumiu voluntariamente o caso. Filha do pescador José da Costa Marques, comandante do Changri-lá, Josefa Marques Cardoso tinha dez anos na época do ataque. “Foi muito difícil. Perdi meu pai e meu irmão Zacarias”, conta. Irmã de outro pescador morto, Etelvina de Navarra Porto emociona-se ao lembrar do episódio. “Meu pai ficou doente com a morte do Joaquim e dois anos depois também faleceu”, diz. O advogado Leven Siano pede o pagamento de até R$ 6 milhões por danos morais.

Leven Siano entrou com a primeira ação na Justiça em 2003, depois que um pesquisador descobriu provas da ação do U-199 e a Procuradoria da Marinha resolveu reabrir o caso. Após perder em primeira instância, o advogado recorreu ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e o caso foi parar no Superior Tribunal de Justiça. Os ministros do STJ ficaram divididos em torno do eventual direito da Alemanha de não se submeter à jurisdição brasileira. Para o ministro Fernando Gonçalves, por exemplo, o assassinato dos pescadores é considerado um “ato de império”, imune a eventuais processos em outro país. Mesmo assim, determinou que o Estado alemão seja intimado a manifestar-se. O ministro Luís Felipe Salomão pensa diferente e defende o julgamento. “Naquele período, já se encontrava vigente o regime instituído pela Convenção de Haia, de 1907, que confere especial importância à proteção dos não combatentes”, escreveu Salomão.

A tese, segundo Leven Siano, ganha respaldo na postura adotada pela própria Alemanha nos Julgamentos de Nuremberg. “Ela renunciou ao direito de imunidade, a fim de se submeter aos processos com vítimas estrangeiras atingidas fora das fronteiras alemãs”, afirma o advogado, cuja artilharia inclui 11 recursos legais e cartas à Marinha. O impasse no STJ levou o caso ao STF. O ministro Ayres Britto espera agora um parecer da Procuradoria-Geral da República para elaborar seu voto. Já o governo alemão não se pronunciou.

domingo, 4 de abril de 2010

A RAZÃO DO IMPÉRIO*

A RAZÃO DO IMPÉRIO*

Os Estados Unidos vão continuar a defender e exercer o poder sem concessões às demandas das outras potências



“Uma aliança entre país constitui-se quando um grupo de nações decide defender um território específico ou uma causa particular; isso define um limite cuja violação constitui casus belli. Pelo contrário, um ‘sistema de segurança coletiva’ não define um território a ser defendido, nem os meios ou armas para fazê-lo.”
HENRY KISSINGER, “Does America need a Foreign Policy. Toward a Diplomacy for the 21th Century”, 2001

O lugar ideal para olhar os caminhos do mundo, em 2005, são as janelas da Casa Branca, em Washington. Ali foram tomadas as decisões que estão redesenhando a geopolítica mundial, desde 1991. Hoje, 13 anos depois da Guerra do Golfo e do fim da União Soviética, ninguém duvida que essas decisões contribuíram decisivamente para a expansão do poder global dos Estados Unidos, que, no início do século XXI, é muito superior ao de todas as demais potências que disputaram a hegemonia mundial, a partir do século XVI. Por isso fala-se cada vez mais num “império americano”, e virou lugar-comum compará-lo com o Império Romano.

Os Estados Unidos saíram da Guerra Fria na condição de hiperpotência, vitoriosa no campo ideológico e econômico e sem adversários geopolíticos capazes de concorrer no campo militar. A União Soviética desintegrou-se juntamente com o projeto socialista, e a Rússia se mantém na condição de segunda potência atômica do mundo, mas precisará de tempo para alicerçar economicamente este poder.

O Japão e a Alemanha, a segunda e a terceira maiores economias do mundo, seguem estagnadas e na condição de protetorados militares dos Estados Unidos; a União Européia move-se em câmera lenta rumo à sua unificação efetiva, contida por suas divergências e conflitos seculares que impedem que ela se transforme num verdadeiro Estado supranacional.

A China é a economia que mais cresce no mundo e tem um projeto estratégico de longo prazo do qual não se afasta, e que a levará à condição de potência mundial, em algumas décadas, mas ela não está disposta a enfrentamentos imediatos, que não sejam por causa de Taiwan.

O resto do mundo parece condenado a um conflito prolongado, como no Oriente Médio, a uma longa exclusão econômica do sistema mundial, como no caso da África, ou a um crescimento vegetativo e errático, mas com pouca relevância geopolítica, como no caso da América Latina.

Em síntese, os Estados Unidos ocupam uma posição de poder absolutamente confortável e inquestionável, e vêm dando demonstrações sucessivas de que pretendem defendê-lo e exercê-lo sem maiores concessões efetivas às demandas “multilateralistas” das outras Grandes Potências. Dessa perspectiva, 2005 deverá ser um ano de acomodação ou de digestão dos acontecimentos e das mudanças de poder que se aceleraram depois dos atentados de 2001. Mas não é possível deduzir o futuro imediato, em linha reta, olhando apenas para os caminhos abertos por esta gigantesca concentração de poder, em mãos de um único Estado nacional.

Em primeiro lugar, porque o funcionamento deste hiperpoder, depois de 1991, não promoveu a paz universal, nem conseguiu estabilizar a economia internacional, como muitos analistas e teóricos acreditaram que aconteceria. Em 1991, a coalizão militar – composta por 28 países – liderada por Estados Unidos e Inglaterra, venceu a Guerra do Golfo e derrotou o Iraque, depois de um mês de bombardeio aéreo contínuo do território inimigo. Expulsou as tropas iraquianas do Kuwait, mas não conquistou Bagdá e não depôs Saddam Hussein.

Entre 1991 e 2003, os Estados Unidos e a Inglaterra bombardearam o território iraquiano, de forma quase contínua, mas não conseguiram atingir e mudar o regime político nem liquidar o aparato militar de Saddam Hussein.

Em 1999, as tropas da Otan, sob a liderança militar dos Estados Unidos, fizeram uma “intervenção humanitária” no Kosovo, bombardearam e destruíram a economia iugoslava e assumiram a administração direta da província, sem conseguir reorganizar o país, nem muito menos eliminar os conflitos étnicos que seguem dividindo a população local, e que foram o motivo explícito da ocupação militar.

Em 2002, a coalizão militar liderada pelos Estados Unidos derrotou o governo Taleban do Afeganistão, substituído por um homem da confiança norte-americana, que foi confirmado pelas eleições de 2004, mas só controla de fato a região em torno de Cabul, porque o resto do território afegão segue em mãos dos “senhores da guerra” e dos próprios talebans. Em 2003, os Estados Unidos e a Inglaterra venceram a Guerra do Iraque, conquistaram Bagdá, destruíram as forças militares iraquianas e destituíram Saddam Hussein.

Mas depois, não conseguiram reconstruir o país nem definir com precisão os objetivos de longo prazo das tropas de ocupação que permanecem em território iraquiano, depois da constituição de um governo local sob tutela americana.

Portanto, 13 anos depois da Guerra do Golfo e do fim da Guerra Fria, o balanço que se pode fazer deste novo tipo de império, do ponto de vista dos objetivos norte-americanos, é bastante negativo. Suas intervenções militares não expandiram a democracia nem os mercados livres; as guerras aéreas não foram suficientes, sem a conquista territorial; e a conquista militar desses territórios não deu conta do problema da reconstrução nacional dos países derrotados.

Em segundo lugar, porque a própria estratégia global americana contém contradições que acabarão afetando e desviando seu caminho expansivo. A começar por sua proposta de criação de uma aliança mundial contra o “terrorismo internacional”, que não tem condições de se sustentar por um período prolongado de tempo.

Basta olhá-la com um pouco mais de atenção para perceber suas limitações intrínsecas. Do ponto de vista da “segurança interna” dos Estados Unidos, é da natureza do novo inimigo, segundo Donald Rumsfeld, mover-se no campo “do desconhecido, do incerto, do inesperado”, aproveitando-se de toda e qualquer “vulnerabilidade americana”. Uma ameaça, portanto, que pode ser nuclear, mas também pode ser cibernética, biológica, química, e pode estar no ar, na terra, na água, nos alimentos, enfim, em centenas de veículos ou lugares diferentes. Nesse sentido, nesta guerra escolhida pelos Estados Unidos, tudo pode se transformar numa arma, em particular as inovações tecnológicas dos próprios americanos. E tudo pode se transformar num alvo, em particular as coisas mais prezadas e desprotegidas dos norte-americanos.

Daí a necessidade defendida pelo governo Bush de criar uma “rede cidadã” de espionagem, constituída por milhões de homens e mulheres comuns que gastariam parte dos seus dias controlando e vigiando seus próprios vizinhos. E é isso que explica, também, a criação pelo governo americano de novas “equipes vermelhas” encarregadas de planejar ataques contra os Estados Unidos, pensando como terroristas, para poder identificar as “vulnerabilidades” do país.

Desse ponto de vista, a visão imperial dos Estados Unidos e a ubiqüidade do seu adversário “interno”, exigirá um controle permanente e cada vez mais rigoroso da própria sociedade americana, vista pelo governo como um imenso universo de possibilidades agressivas, o que aponta numa direção que combina paranóia coletiva com repressão crescente, uma combinação insustentável por muito tempo, num sistema democrático.

Por outro lado, do ponto de vista da segurança externa dos Estados Unidos, a nova estratégia cria uma situação de insegurança coletiva e permanente, dentro do sistema mundial. O novo adversário não é, em princípio, uma religião, uma ideologia, uma nacionalidade, uma civilização ou um Estado, e pode ser redefinido a cada momento pelos próprios Estados Unidos, sendo, portanto, variável e arbitrário.

E, nesse sentido, os Estados Unidos atribuem-se o direito de fazer ataques preventivos contra todo e qualquer Estado onde eles considerem existir bases ou apoio às ações terroristas, o que significa a auto-atribuição de uma soberania imperial. Problema que deverá se agravar, ainda mais, na medida em que outros países, em particular as demais Grandes Potências, se sentirem ameaçadas por forças consideradas terroristas, qualquer que seja a sua natureza, incluindo nações ou minorias internas e rebeldes dentro dos seus territórios.

Neste momento, todos os que tiverem a capacidade militar necessária seguirão o caminho aberto por Israel, e seguido pelos Estados Unidos, optando pelos ataques preventivos. Portanto, a nova doutrina estratégica americana terá inevitavelmente desdobramentos contraditórios e perversos, porque, estabelecido e aceito o princípio geral do “ataque preventivo”, não há consenso sobre o que seja, e quem sejam os terroristas, para cada uma das potências que detêm atualmente os armamentos de destruição de massa. Por isso, a Rússia, a França e o Japão já se atribuíram o mesmo direito aos “ataques preventivos”, mesmo que seja contra minorias nacionais, e no caso do Japão, contra uma ameaça atômica virtual por parte da Coréia do Norte.

Por esse caminho, não há como se equivocar: em algum momento o conflito se deslocará para dentro do núcleo de poder do sistema mundial, recolocando o velho conflito, nu e cru, entre as Grandes Potências.

Aponta nessa direção a decisão americana de devolver a liberdade de iniciativa militar ao Japão e à Alemanha, por conta da Guerra do Afeganistão. E mais recentemente, a reivindicação russa do seu direito de “proteção” à sua “área de influência” ou “zona de segurança” clássica, onde estão incluídos vários territórios que já foram ocupados militarmente pelos Estados Unidos, depois de 1991.

Enquanto a Europa continental começa a rebelar-se contra sua situação de refém militar da Otan e dos Estados Unidos, o que prenuncia o retorno da luta pela hegemonia dentro do continente europeu, mesmo que seja na forma de uma luta prolongada pelo controle da União Européia.

Nesta região, se a Inglaterra sair da União Européia, não é improvável que os capitais alemães acabem seguindo o caminho da história e estabelecendo uma nova e surpreendente aliança com o poder militar “ocioso” da Rússia. Enquanto isso, do outro lado do mundo, o sistema estatal asiático se parece cada vez mais com o velho modelo de competição pelo poder e riqueza que foi a marca originária do “milagre europeu”, desde o século XVI.

E não é provável que se repita na Ásia algo parecido com a União Européia. Pelo contrário, o que se deve esperar é uma intensificação da competição econômica e política pela hegemonia regional, entre a China, o Japão, a Coréia, a Rússia e os próprios Estados Unidos.

Dessa perspectiva, não há dúvida de que a grande novidade geopolítica e geoeconômica do sistema mundial, desde os anos 90, é a nova relação que se estabeleceu entre os Estados Unidos e a China. Ela reproduz e prolonga o eixo Europa-Ásia que dinamizou o sistema estatal e capitalista desde sua origem, e a relação privilegiada dos Estados Unidos com o Japão, desde 1949.

Mas ao mesmo tempo ela contém algumas novidades notáveis. Em primeiro lugar, o novo motor geoeconômico do capitalismo mundial deslocou e esvaziou o tripé da “época de ouro” da economia mundial – Estados Unidos, Alemanha e Japão – que funcionou de maneira extremamente virtuosa entre 1945 e 1980.

Em segundo lugar, esta nova engenharia econômica mundial e a prolongada estagnação das economias alemã e japonesa vêm recolocando o problema dos seus projetos nacionais derrotados ou bloqueados, e a necessidade de retomá-los como forma de sair da crise, sem contar com a ajuda americana. Em terceiro lugar, esta nova aliança apressou a volta da Rússia às suas posições clássicas de corte nacionalista e militarista, obrigada por sua posição eternamente dividida, entre sua presença na Ásia e na Europa.

Mas não há dúvida de que o aspecto mais importante desta nova relação entre Estados Unidos e China é que ela é complementar e competitiva a um só tempo e, ao mesmo tempo, ela é econômica e militar.

Este foi o grande segredo do sistema mundial criado na Europa, no século XVI: a inevitável complementariedade entre os principais competidores que disputam situações hegemônicas e que dinamizam o conjunto do sistema, durante algum tempo, graças à sua competição.

Essa regra não foi obedecida durante a Guerra Fria, quando os Estados Unidos mantiveram sua competição militar com um país com quem não mantinham relações econômicas importantes para o dinamismo de sua própria economia nacional (a URSS). E mantiveram relações econômicas dinâmicas com países que não tinham autonomia militar, nem possibilidade de expandir seu poder político nacional (a Alemanha e o Japão).

Tudo indica que agora, com a nova relação que vem se consolidando entre os Estados Unidos e a China, o sistema mundial deve voltar aos seus trilhos “normais”. Neste momento, os Estados Unidos não têm mais como se desfazer economicamente da China, mas chegará a hora em que terão de enfrentar o desafio da expansão chinesa, sobretudo, quando ela deixar de ser apenas um fenômeno comercial. Na hora em que a China decidir expandir e consolidar seu “território econômico-financeiro” supranacional, lutando ao mesmo tempo pela hegemonia político-militar, na Ásia.

* Parte deste artigo aparece no ensaio “O poder global dos Estados Unidos.
Formação, expansão e limites”, no livro O Poder Americano, publicado em 2004, pela Editora Vozes.

José Luís Fiori
Revista Carta Capital, 29 de Dezembro de 2004
Ano XI - Número 323

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Uma história sem inocentes

Uma história sem inocentes

O aniversário de 46 anos do golpe de 1964, neste 31 de março de 2010, encontra o coronel da reserva, ex-ministro e ex-senador Jarbas Passarinho com 90 anos. Mesmo debilitado por um longo período de doença - uma septicemia que se seguiu a uma pneumonia valeu a ele uma estada na UTI e três momentos em que a morte quase bateu à porta -, Passarinho mantém uma surpreendente lucidez. Retoma quase do mesmo ponto uma conversa que teve com as repórteres oito anos atrás, quando expôs seu grande incômodo pela maneira como a história enxerga os governos dos generais-presidentes Costa e Silva (1967-1969), Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) e Ernesto Geisel (1974-1978).

Para a história, segundo ele, os dois primeiros (aos quais serviu como ministro) ficaram como governos duros - como se as atitudes tomadas por ambos decorressem de uma vontade pessoal ou do espírito antidemocrático dos dois. Do último ficou a impressão de que era alguém com grande espírito democrático - e que, dessa forma, se contrapunha aos dois governos anteriores. O ex-ministro praticamente sugere uma inversão da maneira como a história deve ver cada um desses personagens.

Passarinho propõe uma releitura que, se não consegue atenuar o conteúdo das decisões dos presidentes Costa e Silva e Médici que foram interpretadas pela história como antidemocráticas, de outro recoloca Geisel na história como um presidente particularmente duro. Para o ex-senador, Costa e Silva foi o responsável pelo AI-5, embora a decretação do ato tenha ocorrido por pressão militar, não pela convicção pessoal daquele presidente; da decisão de Médici de dar autonomia ao aparelho de repressão decorreram o descontrole e a tortura generalizada, embora tivesse deixado claro antes a seus auxiliares que não concordava com a tortura. Mas, segundo Passarinho, no governo Geisel houve política de Estado de extermínio de adversários quando os militares já haviam feito, na gestão anterior, a limpeza da guerrilha urbana, que era o que efetivamente ameaçava o regime militar.

Uma decisão presidencial, a de Geisel, eliminou fisicamente a guerrilha rural que estava isolada e matou vários dirigentes do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que nunca pegou em armas contra o regime. "Uma ordem para não fazer prisioneiros só podia vir do presidente da República, de mais ninguém."

Passarinho define as políticas de Estado que endureceram o regime nos governos Costa e Silva e Médici como reações a ações da esquerda armada. O fato de o poder não ter sido entregue aos civis no período pós-Médici, governo que exterminou a guerrilha urbana e entregou ao sucessor a guerrilha rural - do Araguaia - totalmente isolada, foi, para ele, um ato autoritário de Geisel. "Eu tenho a triste impressão de que a guerrilha do Araguaia foi utilizada como pretexto para continuar o regime autoritário", disse, há oito anos.

"Não havia, do meu ponto de vista, a menor razão para continuar um processo autoritário por causa da guerrilha do Araguaia [1969-1975, do PCdoB]. Era um movimento inexpressivo. Ali era uma área que, cercada, poderia resultar até na morte por fome dos guerrilheiros", disse, na primeira entrevista. "Era um grupo de 60 pessoas completamente isolado, rompido com a União Soviética, rompido com a China de Mao Tsé-tung e apenas apoiado pela Albânia, que era o pior país em matéria de PIB da Europa", reiterou.

Foi a convicção de que a luta armada da esquerda não constituía mais nenhum risco ao regime que levou Passarinho, no processo de escolha do sucessor do presidente Médici, a defender a entrega do poder para os civis. "Num dia qualquer de 1973, em janeiro ou fevereiro, procurou-me o meu colega de ministério Costa Cavalcanti [Passarinho era ministro da Educação]. Ele me perguntou: você tem alguma coisa contra o Geisel? Eu falei: olha, não tenho nada contra o Geisel, mas sou a favor de que, quando chegar ao fim do ano de 1973, o presidente Médici entregue o poder aos civis", relatou.

O ex-senador teria defendido, na época, a candidatura de Leitão de Abreu, ministro da Justiça que, na sua opinião, teria sido eleito até pelo voto direto, na esteira da popularidade de Médici. "O Ronaldo Costa Couto entrevistou o nosso famoso presidente, que então era líder sindical, o Lula, em 1989, e o Lula disse que Médici ganharia qualquer eleição que disputasse. Costa Couto perguntou por que e Lula disse: "Porque na época nós, trabalhadores, escolhíamos o emprego que quiséssemos"."

Na biblioteca de sua casa no Lago Norte, onde está cercado de livros que cita em profusão e de um computador que espera a pronta recuperação do dono para cumprir a sua determinação de escrever sobre a tese de que o AI-5 só ocorreu porque existia a Guerra Fria, Passarinho reitera afirmações passadas. E começa do começo.

Descreve a história brasileira no período 1964-1985 como uma sucessão de reações, que tinham, de um lado, uma ação revolucionária de esquerda, e de outro, as Forças Armadas exercendo o papel de guardiãs da ordem interna. No primeiro tempo do jogo, um presidente, João Goulart, que queria "dar um golpe de instituir a república sindicalista". O golpe militar, por essa visão, teria sido um contragolpe - uma reação militar a uma ação da esquerda. O segundo tempo foi a decretação do AI-5 por Costa e Silva - numa reunião do Conselho Político do governo da qual Passarinho participou e declarou seu voto favorável ao ato com a frase que ficou famosa, "às favas os meus problemas de consciência", reproduzida posteriormente. Seria, segundo ele, a reação aos grupos de esquerda que se armavam.

Nesse dia de 2010 que chegava claro pela janela de seu escritório, o ex-ministro do Trabalho de Costa e Silva explicava por que os militares pressionaram pela edição do ato institucional que dava aos militares todo o poder discricionário - de fechar o Congresso, intervir no Judiciário, suspender o habeas corpus e editar leis - ao presidente, que também era um general do Exército (e foi imposto ao Congresso numa eleição indireta, por um colégio eleitoral).

"O Costa e Silva não queria nem decretar o estado de sítio, mas ele foi compelido pelos militares a editar o AI-5. O problema é que o estado de sítio mantinha o habeas corpus. O [Carlos] Marighela [da ALN], por exemplo, foi preso e solto 21 dias depois por causa do habeas corpus. Então os militares disseram: se continuar assim, não podemos garantir a manutenção da ordem. Faz-se um esforço para prender um chefe [guerrilheiro] e a Justiça libera, a Constituição libera."

Daí por que, diz o coronel da reserva, a proposta mediadora do vice-presidente civil Pedro Aleixo, de decretar o estado de sítio em vez de se tomar a extrema medida de edição do AI-5, não resolvia. "Qualquer medida de restrição das liberdades aplicada pelo governo no estado de sítio e aprovada, naturalmente, pelo Congresso, mantém o habeas corpus." Costa e Silva não chegou a se utilizar do instrumento entre a sua edição, em dezembro de 1968, e a trombose que o levaria ao seu afastamento e à sua morte, em agosto de 1969.

No governo Médici, o movimento reativo teria sido a descentralização da comunidade de informações. E, no fim desse período, admite Passarinho, o extermínio de opositores como política de Estado. Essas duas decisões partiram, segundo o ex-ministro, do recrudescimento da ofensiva da guerrilha urbana. Ao receber um informe do seu chefe da Casa Militar, Orlando Geisel, sobre um jovem major que começava o treinamento no setor de informações do Exército e foi metralhado por um guerrilheiro, Médici disse ao chefe militar: "Mas só os nossos é que morrem?" A decisão de descentralizar as decisões, para que a comunidade de informações tivesse autonomia para reprimir os adversários políticos do regime, teria sido tomada aí, segundo o ex-ministro. No fim do governo, a decisão do extermínio foi de Médici - e mantida pelo chefe de governo posterior, Ernesto Geisel - em função dos sequestros de embaixadores pelos grupos armados de esquerda, para libertar quadros que estavam na prisão.

"Tinha mortes do lado de cá para lutar para destruir uma organização guerrilheira qualquer e, se o chefe de facção era preso, se fazia um sequestro de um embaixador e daí se soltava todo mundo. No meu entender foi uma resposta - eu não tenho nenhuma autoridade moral para dizer isso, eu deduzo - a um tipo de ação guerrilheira. Nunca antes uma ação guerrilheira tinha sequestrado um embaixador. Acredito que a ordem de não deixar prisioneiros tenha sido tomada a partir de ações de guerrilha que o governo não teria como combater."

A decisão de descentralizar as decisões de repressão política, reconhece Passarinho, recrudesceu a tortura. Mas, embora o presidente tenha sido a voz final nessa decisão, haveria atenuantes. "Só se fala no Médici, mas não se fala que o poderoso ministro do Exército na ocasião se chamava Orlando Geisel [irmão de Ernesto], que era duro, da linha dura. O Médici descentralizou as regiões e os comandos passaram a ser autônomos, pois até uma ação chegar ao presidente da República, ao Serviço Nacional de Informações (SNI), demorava muito, dificultava o combate à guerrilha. Então se decidiu que a ação ia ser resolvida dentro da região. Nessa descentralização é que, no meu entender, apareceu um comando paralelo, o comando da chamada Comunidade de Informações", disse, anos atrás.

Eliminar fisicamente adversários seria uma decisão estrita de um presidente da República, segundo Passarinho. Ele reconhece que essa decisão foi tomada no fim do governo Médici - e portanto esse presidente foi parte de uma ofensiva que, entre o seu governo e o seguinte, exterminou centenas de adversários. Mas acha que, no caso de Geisel, as mortes e os desaparecimentos foram mais numerosos e menos justificáveis. "Vocês mesmos [a imprensa] publicaram sobre o Massacre da Lapa [chacina que, em 1976, praticamente dizimou o comitê central do PCdoB que estava reunido numa casa em São Paulo, no bairro da Lapa]. Eles entraram atirando. Quem fez isso? E quem matou o Comitê Central do Partidão? Não foi o Médici, não", afirmou, enfático, o ex-senador. "Isso foi uma política de Estado? É lógico que foi. De quem seria? De quem sairia a ordem para cercar um grupo desses? Era exatamente a chamada Comunidade de Informações que existia nos três ministérios, Marinha, Exército e Aeronáutica. Hoje tenho a impressão de que, se o Geisel tivesse sido presidente antes do Médici, teria mostrado exatamente que o Médici era um anjo."

Na defesa de Médici, Passarinho enumera fatos institucionais e decisões de caráter pessoal. A descentralização das decisões sobre a repressão intensificou a tortura, reconhece, mas isso fugiu ao seu controle. Pessoalmente, era contra, garante seu ex-ministro. E repete um "testemunho pessoal": quando assumiu o Ministério da Educação, Passarinho foi procurado por um sindicalista que levava a ele a denúncia de que uma bancária se encontrava em coma, por causa de choques elétricos que recebera na tortura. Passarinho, depois de investigar a veracidade da acusação, levou-a a Médici.

"Eu levei a denúncia ao presidente e disse a ele: acho que nem o senhor pode passar para a história como um presidente da República que permitiu a tortura nem o seu ministro da Educação. Na hora ele chamou a ordenança e deu ordem para ligar para uma determinada pessoa e disse: "Quero saber quem foram os responsáveis". E puniu, transferiu para a fronteira. Vocês podem dizer que foi pouco, devia ter matado, exonerado que fosse, mas puniu!", contou. O ex-senador chamou também, para defender sua argumentação, o testemunho de um livro do ex-chanceler Mário Gibson Barbosa, no qual o diplomata relatou que Médici convocou uma reunião de ministros para dizer que não aceitava a tortura.

Para justificar suas afirmações em relação a Geisel, começa apontando pecados de origem do ex-presidente. "Vejam a diferença entre o italiano e o alemão. Médici, italiano e o Geisel, alemão. O Médici, para assumir o governo, exigiu a volta da eleição direta para governadores de Estado, reduziu o mandato dele para somente quatro anos e procurou pessoas para compor o seu governo que eram consideradas liberais - eu, o [Mário] Andreazza, o Delfim [Neto] e o [Hélio] Beltrão", enumerou Passarinho. "O general Geisel colocou o Congresso em recesso e fez o que o [Paulo] Brossard [senador pelo então MDB do Rio Grande do Sul] chamou de Constituinte do Riacho Fundo [alusão ao sítio que era a residência oficial do presidente no período]. O Médici tinha deixado a eleição direta para governador e voltou a ser indireta; o Médici tinha deixado o mandato de quatro anos para presidente e passou a ser de seis anos, e entregou esse mandato para um general que acabava de ser promovido a quatro estrelas", dizia, há oito anos (esse foi o chamado "Pacote de Abril" de Geisel, que também editou, por AI-5, uma reforma do Judiciário e mudanças na lei eleitoral que favoreciam o regime).

Geisel foi uma opção de sucessão que não agradou a Médici, segundo Passarinho. "Ele não tinha simpatia pelo Geisel porque não suportava o [general] Golbery [do Couto e Silva]. O Golbery fundou o SNI [Serviço Nacional de Informações] e em seguida, no governo Costa e Silva, o Médici assumiu. Quando Médici chegou lá para passar o serviço, as gavetas estavam vazias, porque o Golbery tinha levado todos os arquivos", relatou. "O Médici não queria que Geisel o sucedesse porque temia que ele fosse levar o Golbery. Daí o Figueiredo [João Figueiredo, chefe do SNI de Médici e sucessor de Geisel na Presidência] assegurou para o Médici que o Golbery estava rompido com o Geisel. Quando o Geisel chegou, já trouxe o Golbery, que foi ser chefe da Casa Civil."

O ex-ministro de Costa e Silva e Médici oscila quando fala da tortura, que marcou o período de Médici, principalmente. "Eu chamo esse período de guerra suja porque a Convenção de Genebra não funcionava para nenhum dos lados", afirmou, há oito anos. E, na época, também rejeitou as interpretações de que o período militar foi o império do "mal". "É preciso acabar com esse maniqueísmo: se houve erro, houve de parte a parte e uns foram consequência e outros foram causa."

Nesse dia de março, Passarinho disse reiteradas vezes que não aprovava a tortura, mas tampouco o terrorismo. "Tudo o que aconteceu na luta armada deve aparecer dos dois lados. Eu coloco na mesma linha de crime hediondo não só a tortura, mas o terrorismo também". Todavia, definiu as ações da guerrilha que vitimaram militares e civis como "ódio ideológico"; a tortura, como "tática".

"A tortura desce da área propriamente intelectual e passa para a área tática, é a luta pela obtenção da informação. Aí aparecem os exagerados de ambos os lados", afirma. Aí, Passarinho lembra o atentado no aeroporto de Guararapes, no Recife, em 1967, com saldo de 17 vítimas; e o atentado ao II Exército, com uma vítima fatal. "Qual é a diferença entre isso e a tortura? Não consigo diferenciar em termos de consequência, de hediondez."

Duas horas depois de uma segunda entrevista - separada por oito anos da primeira -, Passarinho dá mostras de cansaço. A filha, Júlia, já ligou duas vezes. "É a policial da família, não queria que desse entrevistas", diz, rindo muito. Ele se declara exausto. Mas continua falando por um tempo. Mais uma história, que puxa a outra - o ex-ministro adora contar histórias com todos os detalhes, como aquela que começa com a descoberta de um d. Helder Câmara ainda integralista, quando estava no colégio, em Belém, e termina com uma negociação secreta com o já bispo de esquerda, em Crato (PE), para evitar que uma greve de trabalhadores se alastrasse pelo Estado, quando era ministro do Trabalho.

E termina com a última: de como uma carta apócrifa, que atribui ao SNI de Golbery, tentava acusá-lo de corrupção por causa da venda de um apartamento, quando era ministro de Médici. Segundo ele, não teve nenhuma dificuldade para desmentir a acusação, já que o apartamento e a casa onde ainda hoje mora foram os únicos patrimônios adquiridos ao longo de toda a sua vida pública. Mas, deixa claro, ficou o ressentimento.


Fonte: Valor Econômico