A pedido do vice-presidente do Paraguai, Federico Franco, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva anunciou a decisão de devolver àquele país o canhão "Cristão", fabricado pelos paraguaios a partir de sinos de igrejas, no curso da guerra com a Tríplice Aliança, formada pelo Brasil, a Argentina e o Uruguai, entre 1864 e 1870.
A medida foi aplaudida pelo presidente do Clube Militar [general Gilberto Barbosa de Figueiredo], afirmando que "normalmente não se devolve troféu de guerra, mas o povo paraguaio merece; é um ato de grandeza".
Aplausos, com um pequeno adendo: mais do que um ato de grandeza, a devolução é um ato de justiça.
"Guerra brasileira"
A Guerra do Paraguai foi o fato mais relevante da história latino-americana, na segunda metade do século 19. A luta contra aquele país, liderado por Francisco Solano López, que a princípio reuniu os três países citados, passou a ser, cada vez mais, uma "guerra brasileira", seja pelos efetivos militares envolvidos, seja por sua repercussão interna.
O episódio tem também muito interesse pelas controvérsias historiográficas que gerou. Até anos recentes, Solano López era considerado, no Paraguai, um herói nacional; no Brasil, foi pintado como um tirano sanguinário, que tivemos de esmagar, apesar de nossa vocação pacifista.
Nem tão herói assim
Essas visões mudaram nos dois lados, pois, se Solano continua a ser um herói da pátria para a maioria do povo paraguaio, vários historiadores daquele país promoveram a revisão para baixo de sua figura. Quanto ao Brasil, a Guerra do Paraguai foi descrita e analisada, por muitas décadas, a partir de uma versão patrioteira.
Qualquer outra versão era considerada impatriótica e implicitamente perigosa. Uma reviravolta ocorreu a partir dos anos 1960 do século passado, no âmbito da voga do nacionalismo anti-imperialista, nos meios intelectuais da América Latina. Um dos pontos centrais da revisão diz respeito às causas da guerra, atribuída às maquinações do imperialismo britânico.
Um livro típico daquela época, "Genocídio Americano - A Guerra do Paraguai", do jornalista Julio José Chiavenato (1979, ed. Moderna, esgotado), teve imenso sucesso nas escolas brasileiras, incorporando a versão conspirativa.
Segundo o autor, ao destruir o Paraguai, o imperialismo inglês manteve o status quo na América meridional e impediu a ascensão de seu único Estado economicamente livre.
Hoje, a tese conspirativa está desacreditada, graças aos trabalhos de Francisco Doratioto, baseado em fontes brasileiras e paraguaias ("Maldita Guerra", 2002, Cia. das Letras), e de outros historiadores, como Ricardo Salles ["Guerra do Paraguai - Escravidão e Cidadania na Formação do Exército", Paz e Terra] e Vitor Izecksohn ["O Cerne da Discórdia - A Guerra do Paraguai e o Núcleo Profissional do Exército", E-Papers].
Na verdade, aos ingleses interessava acima de tudo a estabilidade da região, como garantia de seus bons negócios, e não um conflito. É certo, que após estourar a guerra, bancos ingleses financiaram o Brasil, agravando aliás o problema de nossa dívida pública, mas isso é outra história. O conflito teve causas locais, embora nem sempre fáceis de discernir.
Morticínios
De um lado, Solano López, que instaurara no Paraguai uma ditadura férrea e convertera o país numa grande fazenda pertencente ao Estado, pretendia romper o relativo isolamento paraguaio e abrir caminho para uma presença maior na bacia do [rio da] Prata.
De outro lado, as pretensões paraguaias eram tidas como francamente expansionistas e vistas com suspeita pelos países da Tríplice Aliança. Se López não era um herói precursor do anti-imperialismo, o Brasil liberal, mas escravista, não ficava em boa posição na luta contra o ditador.
Além disso, ao longo do conflito, as forças brasileiras perpetraram uma série de morticínios, assim como o saque de Assunção, quando a capital paraguaia foi ocupada, em janeiro de 1869. O que não quer dizer que as ações paraguaias não se caracterizassem também por muitas barbaridades. No terreno dos números, há uma total incerteza quanto às mortes do lado do Paraguai, variando as cifras entre 9% e 69% da população!
O Brasil enviou para a guerra cerca de 139 mil homens, dos quais uns 50 mil morreram nos combates ou foram vítimas de doenças.
Os contingentes incluíram, além do Exército, os "voluntários da pátria" -na verdade, gente enviada à força para a frente de combate, entre eles escravos que substituíram filhos da elite. Para qualificar o conflito numa frase, lembremos uma carta escrita pelo barão de Cotegipe para o barão de Penedo, em maio de 1866. Nela, há um trecho eloquente, lembrado por Doratioto: "Maldita guerra, atrasa-nos meio século!".
De fato, a guerra não nos atrasou meio século, como pensava o provecto barão, mas certamente mereceu o qualificativo de maldita.
BORIS FAUSTO é historiador e preside o Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Análise da Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 30" (Companhia das Letras).
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