CARLOS PEREIRA DA SILVA GAMA
Mestre e doutorando em relações internacionais pela PUC (RJ), é professor de relações internacionais da PUC (RJ)
LUIZ FELDIMAN
Mestre em Relações internacionais pela PUC (RJ)
Que análise fazer de Honduras em plena queda? Na crise que corre, dois espaços identitários bem demarcados pela territorialidade moderna— o interior da embaixada, brasileiro, e seu exterior, a jurisdição hondurenha — deixam de estar em conjunção política, resultando numa dupla desordem que torna ambígua a fronteira entre dentro e fora.
O equilíbrio perdido, o nexo entre esses dois sistemas políticos, atendia por predicados simples. Extramuros, um Estado de Direito contraposto a longo histórico de governos militares. Intramuros, a imunidade da representação diplomática de um país com longa folha de serviços à causa da articulação de consensos. Sobrevinda a crise, acusa-se em geral desrespeito a princípios constitucionais lá (alternância de poder) e aqui (não intervenção), com a nota picante da onipresente influência do presidente Chávez. Este artigo enfoca as desordens por outro ângulo.
Começando pelo exterior, note-se que o apoio brasileiro ao presidente Zelaya é o apoio de um regime democrático ao representante de outro, deposto. Vem-se chamando a atenção apropriadamente, na tradição ocidental, para o fato de que Zelaya, mais que arbitrariamente expatriado, foi privado do constitucional e inviolável direito de defesa no processo (?) que determinou seu (suposto) desrespeito pela Constituição. Do império da lei, com efeito, não se teve notícia na ação dos — por isso mesmo — golpistas.
Micheletti e os seus tiveram presente, decerto, a necessidade de se apresentarem como respeitadores das instituições, dado que um princípio de legitimidade nas relações internacionais contemporâneas é a forma de governo democrático. Mas isso não eclipsa o vicioso ato de exceção na origem de seu regime de facto, o qual é reforçado pelo cometimento de violências como as verificadas antes e durante o estado de sítio recente e também durante o abusivo e ainda não desfeito cerco à embaixada brasileira.
Passando à reação do Brasil, o contraste de suas diretrizes atuais com três notórias posições que tomou no passado é esclarecedor. A primeira diz respeito à Guerra do Paraguai (1865-1870) — nas palavras de Joaquim Nabuco, o Império escravocrata ironicamente tomava a si o partido da liberdade dos paraguaios contra a tirania de Solano López. A segunda foi a adesão do autoritário Estado Novo às Nações Unidas na causa democrática contra o Eixo nazifascista na Segunda Guerra Mundial (1942). A terceira, não menos irônica, foi o pronto reconhecimento da independência de Angola comunista (1975) pela ditadura de direita do general Ernesto Geisel. Tais ironias, ao que parece, não se apresentam no caso atual.
Muito se tem dito sobre a capacidade de o Brasil corresponder ao protagonismo que se espera de uma potência regional, ou mesmo de um membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Desde que postulou sua candidatura a esse órgão, em 1994, o Brasil apresenta a credencial de ser uma fonte de estabilidade em seu continente. Tal estabilidade, diga-se, não se irradiaria sem a execução de um papel ativo em crises, sem a conjugação de um princípio de não indiferença ao de não intervenção. Essa conjugação, condizente com o Protocolo de Ushuaia de 1998, pressupõe que a estabilidade regional se funde no aludido princípio sistêmico de legitimidade: a ordem democrática.
Quaisquer que fossem as ulteriores intenções de Zelaya com a proposta de uma constituinte, a configuração de um golpe em Honduras faz ponderar cobranças de um perfil necessariamente baixo de nossa diplomacia no caso. Ao mesmo tempo em que — responsavelmente — chama por moderação nas palavras do presidente deposto hospedado em sua embaixada, o Brasil caminha sobre terreno ambíguo. De um lado, o ambiente íntimo e estável do abrigo, salvaguardado pela projeção simbólica da soberania pátria. De outro, o lócus incômodo, circundante, da terra que experimenta turbulências que os brasileiros deixaram no passado.
Defendendo um dos valores basilares do sistema interamericano, o Brasil tem a possibilidade de renegociar seu futuro como potência regional contra o pano de fundo de um hermano convulsionado. Que em outros casos a atual chancelaria não manifeste semelhante assertividade e preferência prática pela democracia tem dado a seus críticos o tema da seletividade, mas não o de uma incoerência profunda com as normas a favor da democracia. Pelo contrário: se guarda algum valor, a posição adotada com relação ao país da América Central é meritória justamente pela defesa do Estado de Direito.
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