Após denunciar caso de espionagem, líder peruano diz que o país vizinho é 'republiqueta'; Bachelet reage
João Paulo Charleaux e Ruth Costas
O presidente peruano, Alan García, qualificou o Chile de "republiqueta" na madrugada de ontem, contribuindo para criar um novo foco de tensão na América Latina. As relações entre os dois países já andavam estremecidas havia meses, mas azedaram de vez no fim de semana, quando García acusou o Chile de cooptar um militar peruano para espionar para o seu governo. "Esses são atos repulsivos, que não correspondem aos de um país democrático e deixam mal a presidência do Chile", disse García. "São próprios de uma republiqueta."
A presidente chilena, Michelle Bachelet, reagiu: "As acusações, que eu considero ofensivas, não contribuem para a cooperação e a integração entre os dois países."
Pouco depois, o chanceler peruano, José Antonio García Belaúnde, anunciou que as provas do ato de espionagem seriam entregues para Santiago. "Estamos num ponto delicado das relações (com o Chile)", admitiu. Às vésperas da eleição do dia 13, a oposição chilena pede o rompimento com o Peru.
De acordo com Lima, o suboficial da Força Aérea Víctor Ariza foi recrutado pelo Chile sete anos atrás e recebia US$ 3 mil mensais para repassar informações relativas ao arsenal, os planos de contingência e a identidade dos alunos da escola de inteligência da Aeronáutica peruana. As provas do esquema estariam no computador de Ariza e em documentos encontrados com ele.
Em agosto, García já tinha denunciado um acordo secreto entre o Chile e a Bolívia, que daria saída para o mar para os bolivianos, mas prejudicaria os interesses de Lima. Além disso, em duas ocasiões, em 2008, o Chile disse ter sido vítima de espionagem dos peruanos. Na mais grave, funcionários da embaixada chilena em Lima tiveram seus e-mails vasculhados por um hacker, supostamente a serviço da inteligência do Peru.
O aumento da desconfiança entre os dois países teria, segundo analistas chilenos e peruanos ouvidos pelo Estado, três motivações.
A primeira é o processo movido por Lima contra Santiago na Corte Internacional de Justiça da ONU, em Haia. O Peru reivindica do Chile uma área de 95 km² no Oceano Pacífico.
"Por isso, tenta dar visibilidade a sua demanda e mostrar-se agredido, na esperança de receber uma decisão favorável", disse Mladen Yopo, subdiretor da Academia Nacional de Estudos Políticos e Estratégicos do Ministério da Defesa do Chile.
"García parte da hipótese de que a Corte lhe dará razão e o Chile não acatará a decisão. Por isso, seria necessário aumentar a força militar peruana e controlar o crescimento da chilena pela pressão da opinião pública regional e global", opina José Rodríguez Elizondo, professor de direito da Universidade do Chile, em Santiago.
O segundo motivo é a compra de armamentos dos militares chilenos - como a recente encomenda feita aos EUA de US$ 665 milhões em mísseis Stinger de médio alcance e em um novo sistema de radares.
O Peru diz que as compras chilenas extrapolam os parâmetros da "dissuasão" e "projeção de força".
"Nos anos 70, chilenos e peruanos gastavam quase o mesmo em defesa", diz Farid Kahhat, cientista político da Universidade Católica do Peru. "De lá para cá, os gastos do Peru permaneceram quase estáveis. Os do Chile aumentaram três vezes e não há perspectiva de reversão desse processo, já que a Lei do Cobre destina 10% das exportações deste produto para as Forças Armadas."
ECONOMIAS ASSIMÉTRICAS
O último fator que impulsionaria a tensão entre os dois países é a assimetria nas relações econômicas.
Segundo Kahhat, hoje há US$ 7 bilhões em investimentos chilenos no Peru e só US$ 1 bilhão em investimentos peruanos no Chile.
"Já há uma rivalidade histórica entre os dois países por causa da Guerra do Pacífico (mais informações nesta página). Agora, esse aumento da presença chilena é vista como uma nova ameaça no Peru", diz. Segundo pesquisas recentes citadas pelo analista, 74% dos peruanos veem os investimentos estrangeiros no país com bons olhos. Quando o capital é chileno, o índice cai para 41%.
ACUSAÇÕES
Alan García
Presidente do Peru
"Esses são atos repulsivos, que não correspondem a um país democrático. São atos próprios de uma republiqueta"
Michelle Bachelet
Presidente do Chile
"São acusações ofensivas que em nada contribuem para a cooperação e integração. O que deve primar é o respeito e a responsabilidade das autoridades"
Região sofre com velhas disputas
Além da Guerra do Pacífico, que transformou em inimigos Peru, Chile e Bolívia, outros conflitos mantêm a região em constante crise. Quito e Bogotá romperam no ano passado, quando a Colômbia bombardeou um acampamento das Farc no Equador.
Recentemente, a Venezuela acusou a Colômbia de querer levar os dois países à guerra. Caracas também reivindica parte do território da Guiana, que tem um problema semelhante com o Suriname. A Nicarágua vive às turras com Honduras, por causa da fronteira marítima; com a Costa Rica, em razão de um tratado de limites mal feito; e até com a Colômbia, pela posse do arquipélago de San Andrés.
A disputa entre Argentina e Grã-Bretanha pela soberania das Malvinas levou ambos à guerra, em 1982, e também atormenta a diplomacia regional.
Atritos tiveram início há 130 anos
João Paulo Charleaux
Por trás do duro discurso feito ontem pelo presidente peruano, Alan García, há 130 anos de ressentimentos e desconfiança. Chile, Peru e Bolívia enfrentaram-se entre 1879 e 1884 na Guerra do Pacífico, que terminou com os chilenos anexando parte do território peruano e bloqueando a saída da Bolívia para o mar - duas feridas nunca cicatrizadas. A herança de litígios fronteiriços começa no Deserto do Atacama e avança pelo Oceano Pacífico, em uma área de aproximadamente 95 quilômetros quadrados.
O problema é que qualquer solução que seja negociada entre Chile e Peru continuará impedindo que os bolivianos voltem a ter acesso ao Pacífico. Da mesma maneira, qualquer acordo entre Chile e Bolívia inviabilizará a demanda original peruana pela ampliação de seu mar territorial. Diante do impasse, o Chile armou-se, priorizando a compra de fragatas e submarinos. A Bolívia deu sinais de que poderia aceitar a simples abertura de um corredor de acesso ao Pacífico. E o Peru levou o caso à Corte Internacional de Justiça da ONU.
"A primeira etapa da estratégia peruana foi jurídica e terminou com a instalação do processo na Corte Internacional de Justiça, em Haia, em janeiro do ano passado. Agora, estamos vendo uma segunda etapa, na qual os principais componentes são de cunho comunicacional e militar", disse ao "Estado" José Rodríguez Elizondo, ex-embaixador chileno que esteve exilado no Peru por dez anos e se dedicou ao estudo do conflito sobre a fronteira marítima.
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