Pepe Escobar, Al-Jazeera (de Bangkok, Tailândia)
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Traduzido pela Vila Vudu
O Czar chegou às lágrimas – improvável remake de Moscou contra 007 (From Russia with love, 1967). A Igreja Russa Ortodoxa – que apoiou firmemente sua campanha – estava contentíssima. As lágrimas do Czar rolaram, em teoria, em homenagem aos cidadãos daquele “grande país”, aos quais ele quer garantir “vida decente”. Ele está de volta –, como uma vingança; o mais gentil, o mais doce Putinator.
A tarefa que terá pela frente é gigantesca. Seu modelo vertical de soberania democrática – concebida pelo ex-conselheiro Vladislav Surkov[2] – já começa a beliscar. Tem de simultaneamente combater a corrupção horrenda, dobrar a burocracia e disciplinar as oligarquias centrais e locais.
Tem de enfrentar a drenagem ininterrupta de cérebros russos: até aqui, mais de dois milhões de russos já partiram.
Tem de maximizar os lucros de espantosos $1,5 trilhão das exportações de petróleo, desde que chegou ao poder pela primeira vez, em março de 2000. E que ainda não bastam para melhorar substancialmente a infraestrutura russa.
Recordo vivamente março de 2000 em Moscou: ninguém sabia, sequer, se o Czar teria competência para erguer a Rússia, depois dos pantanosos anos de Yeltsin e dependência de Washington; ou se, ao contrário, deixar-se-ia arrastar como um fantoche.
E ninguém nem de longe imaginava que ele rebentaria a banca, com o hoje lendário discurso de fevereiro 2007 em Munich[3] – quando denunciou claramente a obsessão bélica do governo Bush e declarou o fim do velho mundo unipolar.
Washington enlouqueceu de fúria. Afinal, a nova estratégia recém projetada acabava de pôr a Rússia no papel de, no máximo, um vassalo confiável. E, de repente, a Rússia surgia em cenário global, com política internacional própria e autônoma. A Rússia voltava a modelar a própria influência sobre os ‘-stãos’ da Ásia Central. Os BRICSs Rússia e China começaram a se reaproximar, justamente quando os EUA supunham que a Rússia aceitaria sem qualquer protesto o escudo antimísseis da OTAN e lá ficaria, sem protestar, cumprindo a missão de “conter” a China.
Não surpreende que as elites de Washington – e seus hagiógrafos nas redes Time Warner, News Corporation e New York Times – continuem boquiabertas até hoje, mal conseguindo disfarçar o estupor.
Foi Putin quem, praticamente sozinho, reorganizou na Rússia a empresa-superpotência no campo da energia controlada pelo estado, a Gazprom – maior exportadora mundial de gás natural e segunda maior mundial de exportação de petróleo, atrás só da Arábia Saudita.
Agora, o desafio é oferecer “vida decente” a cada russo e a todos os russos. Segundo o Sberbank, maior banco de empréstimos da Rússia, o Czar terá despesas da ordem de nada menos que $170 bilhões anuais, ao longo dos seis anos de mandato. Orçamento muito apertado, considerando-se as despesas necessárias para organizar a Olimpíada de Inverno de 2014 e a Copa do Mundo de 2018.
E ainda mais apertado, se que considera que a fuga de capitais que saíram da Rússia em 2011 alcançou espantosos $84 bilhões. O Czar quer muito reverter esse movimento e tornar a Rússia atraente para o capital estrangeiro – fazendo-a saltar de um triste 120º lugar, para, pelo menos, o 20º.
O mundo segundo Putin
Não há qualquer tipo de conspiração. A essência da visão de mundo de Putin está claramente exposta em “Is Putin’s Russia keeping up with a changing world?”, 1/3/2012, emhttp://valdaiclub.com/
Será crucial que haja maior coordenação geopolítica entre os países BRICSs – as principais potências emergentes, que produzem mais de 25% (e aumentando) do PIB global. Para Putin, os BRICSs são “os mais eloquentes símbolos de transferência, de uma ordem mundial unipolar, para uma ordem mundial mais justa”[4].
Putin vê a Rússia aberta para negociar com todos. Jamais economicamene autárquica, a Rússia está mais que pronta para “aproveitar o vento chinês, que venha inflar as velas de nossa economia.”
Indiferente ao Oriente Médio Expandido de Washington – que, para o Pentágono, cobriria da África Ocidental até Xinjiang na China –, Putin focar-se-á na Eurásia, que inclui toda a China, o sul da Ásia Central, o Irã e o sudoeste asiático (também chamado Oriente Médio). A Índia com certeza gosta da ideia – porque um relacionamento íntimo com Moscou serve de contrapeso ao eixo sino-paquistanês; e para Moscou, uma Índia mais assertiva na Ásia Central serve de contrapeso à China.
O mais importante: esqueçam para sempre o “reset” Clinton-Lavrov, de março de 2009, das relações EUA-Rússia da Guerra Fria. Não por acaso, a palavra escrita no botão que os dois apertaram foi traduzida para o russo como “repetir”, não como “reiniciar”!
As eleições russas em números
Washington e a OTAN – obcecadas com mísseis de defesa – logo sentirão a plena força doPutinator. Embora Putin admita que talvez houvesse sinceridade na ideia de Obama, de um “reset”, os resultados, para ele, foram zero: “Deu em nada, quanto ao plano dos mísseis de defesa.” Por isso, os EUA dedicam-se a comprar “invulnerabilidade total” com seus mísseis de defesa, e nada garante completamente que, um dia, a Rússia não vire alvo. Assumindo que haja um Obama II, será preciso dar reset no reset.
Tomara que você viva tempos interessantes[5]
Chris Hutchins, biógrafo da princesa Diana e do bilionário Roman Abramovich, proprietário do Chelsea e autor de um novo livro, Putin[6], cuja pesquisa exigiu-lhe seis anos de trabalho, jura que o Czar é “o político mais interessante que há hoje no cenário mundial”.
Fãs do carnavalesco Silvio “Bunga Bunga” Berlusconi – amigão de Putin – talvez discordem. Mesmo assim o Czar pode realmente personificar o último “homem-sem-qualidades” [o último ‘herói-sem-nenhum-caráter’ (NTs)], sempre mudando de pele e cheio de expedientes e recursos, tão demonizado no ocidente –, mas não no oriente. Chamem o Dr. Freud – e culpem os medos que o ocidente padece do próprio declínio. Diferente disso, a autoconfiança doPutinator é infatigável, na crítica sem refinamento, mas implacável, da ilimitada hipocrisia do ocidente.
Poucas elites anglo-norte-americanas – diferentes das alemãs, com as quais Putin firmará uma parceria estratégica – reconhecerão em Putin sequer o mérito de lutar sem descanso para posicionar a Rússia no mundo multipolar emergente.
Seu motto de antes – “estabilidade” – funcionou tão bem, que a maioria dos russos jamais se sentiram tão estáveis como durante seu governo, desde o colapso da União Soviética. Agora, é quase como se um odor à Rosa Luxemburgo flutuasse no ar. Reforma ou revolução?
Esqueçam qualquer revolução colorida na Rússia. Haverá reformas. Mas nos termos doPutinator.
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[1] Orig. Get over it. É título de canção de Amy Winehouse (em http://letras.terra.com.br/ amy-winehouse/1788445/) e, ali, significa aproximadamente “superar [vício ou mania]”. Também pode ser traduzido por “resolver, encontrar solução”, como em “It took us a long time to get overthe problems with the computer system”. E há outras possibilidades [NTs].
[2] 28/12/2011, New York Times http://www.nytimes.com/2011/ 12/28/world/europe/putin- takes-another-swipe-at- russian-protesters.html?_r=1
[3] Vladimir Putin, Discurso à 43ª Conferência sobre Políticas de Segurança, Munich, Alemanha, 2/10/2007. Pode ser lido (em inglês) em http://wakeupfromyourslumber. com/node/646. Aqui, alguns excertos traduzidos:
“A Rússia – nós – recebemos incansáveis aulas de democracia. Mas, por alguma razão, nossos ‘professores’ recusam-se a aprender sobre democracia... Um estado, e, sim, claro, mais que todos, os EUA todos os dias ultrapassam suas fronteiras nacionais de todos os modos imagináveis. Vê-se na economia, na política, na cultura, em políticas educacionais que os EUA impõem a todo o planeta. Quem quer isso? Quem vive feliz nesse mundo falsamente multipolar? (...)
Quem poderia viver feliz e em segurança, se a lei internacional é usada como muralha para proteger só eles e sempre eles? E é claro que política internacional desse tipo só faz estimular uma corrida armamentista. (...)
Creio que seja óbvio para todos que a expansão da OTAN nada tem a ver com a modernização da Aliança em si, com com qualquer intenção de aumentar a segurança da Europa. Ao contrário, é grave provocação, que compromete o nível indispensável de confiança mútua. E temos todo o direito de perguntar: contra quem se orienta toda essa expansão? E que fim levaram as garantias e promessas que ouvimos de nossos parceiros ocidentais, depois da dissolução do Pacto de Varsóvia? Onde andarão hoje aquelas declarações? Ninguém lembra delas! Mas permito-me relembrar os presentes do que então se disse. Cito, por exemplo, o que disse o secretário-gera da OTAN, Sr. Woerner, em Bruxelas, dias 17/5/1990: “o fato de que estamos dispostos a não plantar um exército da OTAN fora de território alemão é firme garantia de segurança para a União Soviética”. Sim mas... e onde está a garantia?”
[4] Vladimir Putin, “Russia and the changing world”, 27/2/2012, Ria Novosti, Moscou, emhttp://rianovosti.com/russia/
[5] Orig. May you live in interesting times é frase frequentemente apresentada como uma espécie de ‘praga’ chinesa, que seria atualização de antigo provérbio chinês. Variantes da mesma ‘praga’ seriam “Tomara que você atraia a atenção dos poderosos” e “Tomara que você encontre o que tanto procura” (mais sobre isso em http://en.wikipedia.org/wiki/ May_you_live_in_interesting_ times, inclusive uma versão segundo a qual a frase teria nascido em 1939, em American Society of International Law Proceedings, vol. 33 [NTs].
[6] Lançado na Rússia e na Inglaterra essa semana. Em http://www.amazon.co.uk/Putin- Chris-Hutchins/dp/1780881142[NTs].
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