DANIEL AARÃO REIS
Um estudioso estrangeiro da história do Brasil, na campanha eleitoral de 1989, surpreendeu-se com um fato que ele considerou inusitado: os diversos candidatos, fosse qual fosse o partido, de direita, de centro ou de esquerda, não se referiam às Forças Armadas. Nenhuma proposta, reflexão alguma. Como se as Forças Armadas simplesmente não existissem ou não tivessem jamais existido. Até os dias de hoje, pode-se dizer que esta atitude permanece inalterada.
No entanto, e como se sabe, desde a fundação da República, as Forças Armadas, e o Exército em particular, são instituições incontornáveis. Protagonizaram, em 1889, o golpe que instituiu o novo regime. Nos anos 1920, o chamado movimento tenentista agitou a sociedade com propostas reformistas. Foram militares os líderes da mais importante rebeldia armada deste país: a coluna guerrilheira liderada por Miguel Costa e Luiz Carlos Prestes, de 1924 a 1927. Em 1930, o episódio que derrubou a Primeira República seria impensável sem a participação dos militares. Na ditadura do Estado Novo (1937-1945), foram as Forças Armadas uma das bases principais de sustentação da política nacionalestatista, desenvolvimentista e industrialista empreendida sob liderança de Getúlio Vargas.
Entre 1945 e 1964, envolveram-se novamente na política. Eram os tempos áureos da Guerra Fria, entre o chamado “mundo livre” (capitalista), capitaneado pelos EUA, e o comunismo internacional, pela União Soviética. As disputas das superpotências galvanizavam as energias políticas, condicionando, embora não determinando, em toda parte, os debates. No início dos anos 1950, o Clube Militar e as discussões ali travadas eram referências fundamentais nos debates políticos. O movimento nacionalista que então emergiu tinha entre os militares muitos adeptos. Mas havia outros mais que optaram pelo alinhamento com os EUA. Insultavam-se como criptocomunistas ou entreguistas, os primeiros favoráveis a alianças com os comunistas num processo de distribuição de renda e de poder; os segundos temendo mais que tudo o comunismo e também as implicações que uma eventual vitória revolucionária pudesse ter para a organização e a própria existência das Forças Armadas como instituição nacional.
Neste período, núcleos militares perpetraram golpes e contragolpes — para salvar ou enterrar a democracia — que abalaram o país.
Em 1964, importantes segmentos das Forças Armadas desfecharam, com amplo apoio civil, um golpe de Estado que instaurou um outro longo período ditatorial, sob liderança militar: os cinco ditadores presidentes foram todos generais do Exército.
Seu protagonismo a partir daí foi tão decisivo que se tornou lugar-comum designar o regime como ditadura militar, quando, a rigor, nenhum óculos de grau é necessário para perceber que a ditadura, desde o início, e até o fim, teve caráter civil-militar.
Em síntese, uma sociedade marcada pelo inter vencionismo dos militares.
É verdade que, desde 1979, quando se encerrou a ditadura e, especialmente, desde 1985, quando assumiu um primeiro presidente civil depois de 21 anos de governos presididos por militares, as Forças Armadas tenderam a sair do proscênio.
Teriam hibernado? O fato é que sobre elas a maioria prefere não falar.
Nada dizer de sua cultura política, ainda presa aos parâmetros anacrônicos da Guerra Fria. De suas opções e indecisões. De seu monolitismo aparente, adquirido depois de 1964, em contraste com o pluralismo anterior.
De sua crise de identidade — servem exatamente para quê as Forças Armadas? Da maneira como a memória nacional é ali cultivada, desde os colégios militares aos sofisticados cursos de estado-maior. Dos processos de formação de seus quadros. Dos procedimentos com que zelam pelos arquivos da nação sob sua guarda e do silêncio com que protegem a tortura praticada nos tempos da ditadura. Do modo como ainda não se reconhecem como simples funcionários públicos, uniformizados e armados pela sociedade que, com os impostos, remunera seu trabalho.
Nada disto é discutido. Nem pelos próprios militares. De quando em vez, em torno de um tema específico, aparecem alguns sinais, mas logo desaparecem, como se estivessem escondidos por uma cortina de fumaça, daquele tipo que se dispara quando, numa batalha, se quer esconder uma força que avança ou que recua.
De sorte que as Forças Armadas, embora visíveis, movem-se com procedimentos próprios, ignorados e não controlados. Contudo, suas marcas na história permanecem, como ferro em brasa no couro dos bois.
Mas quem as vê, embora tão perto dos nossos narizes? George Orwell dizia com propriedade que “ver o que está na frente do próprio nariz é algo que requer esforço constante”. Talvez seja isto que esteja faltando à sociedade brasileira e a seus eminentes líderes políticos e militares: esforço constante.
DANIEL AARÃO REIS é professor de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense.
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