Fui ver o "Batman", claro. É impossível ignorar esta oitava arte que surge em Hollywood: os efeitos, os computadores criando odisséias tecnológicas homéricas do século XXI. O filme é espantosamente constelado, "risômico", explodido, até difícil de acompanhar para um linear tropical como eu. Pensava em ver mais um show tipo "Missão impossível", mas não é. É mais.
Os filmes-catástrofes ou as aventuras dos efeitos especiais pareciam dizer: "Nós somos a América, nós temos a cultura da certeza! Aqui tudo tem princípio meio e fim. Aqui, tudo está sob controle e termina como nós queremos. Aqui há a competência!"
Mas, aí, um belo dia, os aviões se chocaram com as torres em Nova York. E dá para ver que a queda do WTC está ali, como uma cicatriz na dramaturgia americana. O 11 de Setembro criou uma era de ambivalência para o cinema. Acabaram mocinhos x bandidos.
O sintoma fica claro com a extraordinária interpretação de Heath Ledger (O neoCoringa) que gira isolado criando uma obra-prima rara no cinema, uma ilha de cinismo contemporâneo, misturando bem e mal, misturando horror e simpatia, matando com um sadismo sofisticado e, depois (plano inesquecível), saboreando o vento fresco da noite na janela de um carro, com sua cara de palhaço desenhada por um Pollock ou Rauchenberg. "Escolhi o caos" — ele diz para o Batman. Heath, de certo modo, faz uma critica ao próprio filme. Heath é quase uma paródia do "grande espetáculo", é um marginal dentro do elenco.
Ele nos aponta para um outro filme que poderia existir, além das raízes moralizantes e aristotélicas deste, bem escondidas, sem dúvida, mas que estão lá. Heath lembra Johnny Depp em "Piratas do Caribe", lembra também a genial presença de Anthony Hopkins em "O silêncio dos inocentes". Os três atores estão adiante dos filmes que lhes pagam. Os três, Hannibal the Canibal inclusive, nos fascinam porque parecem estar mais além de uma moral antiga, que eles contemplam, do outro lado do Bem. Hannibal e Heath parecem saber mais do que nós, que vivemos ainda mergulhados em dúvidas morais e culpas.
Nada mais atraente que a psicopatia elegante. No mundo cruel de hoje, todos queremos ser como Hannibal, longe de uma arcaica compaixão.
O Coringa Heath nos apavora e nos atrai, e não conseguimos odiá-lo completamente porque ele é extremamente contemporâneo. É como se ele dissesse: "Nenhum saber, nem ética, nada vai apagar o animal feroz que nos habita. Eu sou uma vanguarda". Ele diz no filme para um perplexo Batman: "Eu não quero te matar; você me completa." E completa: "Não sou um monstro; estou além da curva..." Heath Ledger é apavorante porque não tem motivo claro para agir. Sua única regra é mostrar o absurdo de querer impor ordem no caos. Ele encarna os impulsos destrutivos humanos inexplicáveis. Como Hannibal. Ou, na vida real (se ela ainda existe), como o Muhhamed Atta, o chefe dos terroristas do 9/11. Ele não tinha religião, não cria em Alá, não tinha ideologia política, era químico na Alemanha, não tinha motivos. Ele queria fazer o impensável, o inominável, acima de qualquer crime, queria conhecer aquela fração de segundo entre a vida e a morte, com a parede do WTC tocando o nariz do Boeing.
E aí, pensamos: para que praticar o bem se ele não é mais possível? Quando pedimos o bem, falamos como de uma harmonia perdida. Será que ela já houve? Invenção platônica, iluminista neste mundo sujo? Pensamos com o corpo, queremos que o mundo seja um "todo harmônico", como o nosso organismo. A idéia de "fragmentário" gera angústia porque lembra a morte.
E o mal?
O mal virou uma necessidade social. Não dá mais para viver sem praticar o mal. O mal é um mecanismo de defesa. Ao denunciar o Mal, vivemos dele. Eu lucro, sendo um cara legal que denuncia o mal e assim escapo da fome, comendo a comida de quem lamento. O Bem não dá filme. Já os psicopatas estouram bilheterias. Se não há um mal claro, como seremos bons? O Mal é sempre o outro. Nunca somos nós. Ninguém diz, de fronte alta: "Eu sou o mal!" Ou: "Muito prazer, Diabo de Oliveira..." Como inventar uma práxis do bem? O que é o bem hoje? Será lamentar tristemente uma impotência, um negror melancólico?
Heath Ledger, o Coringa, nos lembra inevitavelmente o Osama bin Laden. Ele também veio sem motivo, do nada, e fez o maior filme-catástrofe da História. Não haveria este Batman sem Osama; não está no enredo — está no ar.
Achávamos que haveria um futuro confortável no século XXI. Mas Osama não está em nosso tempo. Osama nos fala de fora do tempo, da História. Osama mora na eternidade. Queremos desesperadamente explicá-lo à luz da razão, mas ele é imune a interpretações. Osama nos fez ver a grande montanha de lixo que se escondia sob o progresso, a razão do Ocidente. Desmoralizou a América, nosso mito de competência, e dirigiu, comandou todos os erros pavorosos da vingança americana. Nunca a América errou tanto como sob esse estafermo do Bush. Toda a trapalhada ocidental, o Mal ocidental escondido sob o Bem apareceu, o eixo ocidental do Mal.
E Obama? Agora ele surgiu, prometendo o Bem. Obama é uma antítese simétrica do Osama. Será? Será que depois de uma década do que Norman Mailer chamou de "tempestade de merda", a História deseja um espasmo de mudança para o "bem?"
Pode ser que Obama encarne uma tendência histórica, não da América apenas, mas do mundo. Não é o messias, claro. No entanto, mais importante que sua eleição pessoal é o fato de que ele pode eleger uma nova consciência na América. Pode ser que descubramos que o mundo atual não é só esta bosta que os reacionários criaram. O mundo tem mil possibilidades de riquezas, de milagres científicos e culturais, que estão esmagados pela estupidez endêmica dos fundamentalistas dos USA. Uma vitória do Obama, depois de Osama, depois de Batman, pode não apenas combater o mal do mundo, mas restaurar um Bem perdido.
O Coringa genial de Heath Ledger é o sintoma de um mal ridículo que tem de acabar.
Arnaldo Jabor
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